Por: Juan Valencia

Nestas linhas será contada uma história. Não só uma história do hóquei no gelo nas Olimpíadas com um final feliz, mas sim uma história que deu esperança a uma nação inteira, uma nação que estava em crise e sem esperanças. A história de um jogo que mudou tudo. Uma história que, depois de algum tempo, TheSlot.com.br tem o prazer de recontar.

Em 1973, a primeira Crise do Petróleo estourou de vez, depois que a OPEP triplicou o preço do barril como ao apoio dos EUA à Israel durante a Guerra do Yom Kippur. Em 1979, uma nova crise ocorreu, após a queda do xá do Irã Mohammad Reza Pahlavi e a ascensão ao poder do Aiatolá Komeini, inimigo declarado de Israel. Para piorar o cenário daquela década, os EUA também perderam a Guerra do Vietnã, que dividiu as opiniões dos americanos durante muito tempo, gerando vários conflitos internos, como o ocorrido em Kent, Ohio, em que a guarda nacional atirou contra manifestantes da Kent State University, matando quatro pessoas e desencadeando uma greve geral, fazendo com que algumas universidades ficassem fechadas por algum tempo. Foi também a década do escândalo de Watergate, que fez o presidente Richard Nixon renunciar ao cargo. Em 1979, ocorreu o acidente na usina nuclear de Three Mile Island, ilha da Pensilvânia, o maior da história antes de Chernobyl. E, se faltava algo para acabar com todas as esperanças do povo norte-americano, Jimmy Carter, o então presidente do EUA, foi a público dizer o que todos já sabiam: os EUA eram uma nação em crise. Dá para imaginar como estava a esperança e a confiança de qualquer norte-americano depois de uma das piores décadas da história dos EUA, que poucas vezes viu seu povo sentir-se tão frágil. Do outro lado, tínhamos a URSS, que estava em seu auge na década de 1970. Você leitor deve estar me perguntando o que isso tem a ver com hóquei no gelo? Bom, até aqui nada, mas essa introdução foi só para dar uma maior noção de como estava se sentindo o povo norte-americano e o que poderiam representar as Olimpíadas de 1980, disputadas em Lake Placid, EUA. 

Como nas Olimpíadas de Inverno daquela época não era permitida a participação de jogadores de ligas profissionais, os países mandavam jogadores amadores para as competições. A melhor campanha do EUA até então tinha sido em 1960, quando ganharam o ouro. De 1960 a 1980, o máximo que conseguiram foi uma medalha de prata, em 1972. Para montar um time competitivo para as Olimpíadas, os EUA precisavam de um grande  técnico. Para isso, chamaram Herb Brooks para ser o cargo. Brooks estava no elenco dos EUA em 1960, e na época em que foi chamado para ser técnico do time americano, era conhecido como o melhor técnico do país, devido ao seu trabalho na Universidade de Minnesota, onde ganhou três títulos da NCAA.O novo treinador demorou um ano e meio para preparar o time que viria a ser campeão, fazendo varias peneiras, dentre elas a famosa "Colorado Springs", onde reuniu jogadores de hóquei de todos os cantos dos EUA. No geral, ele tentou pegar mais jogadores da universidade em que trabalhava, já que conhecia melhor o estilo de jogo deles, e também da outra potência do hóquei universitário — e rival da equipe de Minnesota —, a  Universidade de Boston. Contudo, mesmo contando com os melhores jogadores amadores, Brooks ainda sentiu que o time era muito novo e nem se comparava ao time soviético, que já era experiente e dominava o hóquei internacional. Para fazer com que eles amadurecessem, ele se tornou aquele técnico "chato", daqueles que se você faz algo de errado, vai falar muito no seu ouvido. Ele se tornaria quase que um “inimigo” para os jogadores, de forma a fazer com que estes dessem o melhor de si para tentar satisfazer o técnico. E essa estratégia acabou fazendo com que o time ficasse muito unido, mesmo com vários jogadores do elenco pertencendo a universidades rivais.

Com as Olimpíadas se aproximando, Brooks levou seus comandados para uma turnê pela Europa, onde ganhou seis dos oito primeiros jogos que disputaram. Numa partida que os EUA só empataram, ele não deixou os jogadores voltarem ao vestiário após o final do jogo. Ao invés disso, todos tiveram que patinar de um lado a outro do rinque sem parar. Para se ter uma idéia de quanto tempo eles patinaram, as luzes do ginásio chegaram a ser apagadas, e lá ficaram os jovens atletas patinando no escuro... Para muitos deles, aquele momento serviu para que todos se sentissem mais unidos do que nunca, pois o foco de toda sua ira estava voltado para o treinador, e não para seus rivais e agora "colegas" de time. A turnê pela Europa continuou e os EUA ganharam 30 dos 40 jogos que fizeram em seguida. Já de volta a Lake Placid, a equipe disputou um torneio pré-olímpico, onde ganhou do time B soviético por 5-3, e acabou ficando com o título do torneio. 

Contudo, mesmo as vitórias não eram suficientes para deixar Brooks feliz, ainda mais porque chegava a hora de cortar seis jogadores do elenco que disputaria as Olimpíadas. Num certo dia, ele ligou para nada mais, nada menos que o capitão do time Mike Eruzione e falou: "Você está cortado, foi um erro eu ter selecionado você." Sua ideia era deixar os outros jogadores com medo de serem os próximos, fazendo com que eles dessem o melhor de si. E, para por mais medo ainda, Brooks pôs vários jogadores das peneiras para jogar algumas partidas. Chegou um certo momento em que Jack O'Callahan, já farto de tudo aquilo, falou para o treinador; “Pare com isso. Estamos a poucas semanas das Olimpíadas. É hora de nos prepararmos." Naquele momento, Brooks teve certeza do interesse do time pela competição e pouco depois já estava chamando Eruzione de volta para elenco que disputaria os Jogos. Com apenas três dias restando para o início das Olimpíadas, ainda faltava um amistoso, e justamente contra o time a ser batido naquela competição. Em pleno Madison Square Garden, os EUA enfrentariam a tão temida URSS, que vinha com o time completo e tinha acabado de vencer o time das estrelas da NHL, numa série de três jogos. O resultado do confronto foi uma verdadeira lavada dos soviéticos para cima dos americanos, 10-3. Depois desse jogo, a expectativa era de outra lavada soviética nas Olimpíadas, já que praticamente ninguém acreditava no time norte-americano. 


E finalmente começam a Olimpíadas! Os EUA estrearam contra a Suécia, numa partida que também teve uma pequena "dose de milagre". Com sua equipe perdendo por 2-1, Brooks tirou o goleiro, e, numa bomba de Bill Baker, os EUA empataram. Muitos acreditam que se não fosse aquele empate os EUA não teriam passado para a fase final do torneioO segundo adversário seria a Tchecoslováquia, que havia sido prata nos jogos de 1976 e era considerada a segunda melhor seleção do mundo na época. Surpreendentemente os EUA venceram por 7-3.  Depois viriam Noruega (5-1) e Romênia (7-2), que acabaram sendo jogos fáceis para os EUA. Para encerrar a fase de grupos, ainda faltava a Alemanha Ocidental. Depois de saírem atrás no marcador em 2-0, os americanos demoraram um pouco para se recuperar do susto e só conseguiram virar o placar no último período. Com a primeira fase encerrada e pela combinação dos resultados, os EUA seriam obrigados a enfrentar logo de cara na fase final a invencível URSS. No dia 22 de Fevereiro de 1980, os EUA entrariam no gelo para enfrentar a seleção da União Soviética, que vinha de uma campanha de cinco vitórias e nenhum derrota. Não havia dúvidas que a URSS era mais do que favorita ao ouro, afinal, tinham jogadores considerados amadores, mas que em sua essência eram profissionais, enquanto os EUA tinham apenas estudantes que deram sorte de chegar até a fase final do torneio olímpico. Brooks percebeu que os soviéticos estavam excessivamente confiantes, achando que estavam com a medalha de ouro garantida, ao mesmo tempo em que seus próprios jogadores viam os soviéticos não como jogadores de hóquei, mas sim como deuses do gelo! Invencíveis! Para tentar fazer com que os jogadores americanos olhassem os soviéticos como meros mortais, Herb Brooks comparou Boris Mikhailov, um dos maiores jogadores da história da URSS, com o comediante Stan Laurel, da dupla “O Gordo e o Magro”. Para os seus jogadores, Brooks perguntou: "Vocês conseguem bater no Stan Laurel, não conseguem?"

Com a arena lotada, cheia de bandeirinhas, bandeiras e bandeirões dos EUA, os norte-americanos entraram fortes e confiantes, um time totalmente diferente daquele que jogou contra o soviéticos no Madison Square Garden semanas antes. Porém, quem abriu o marcador foi mesmo a URSS, com Vladimir Krutov. Mas os EUA não deixaram barato, e, após um ótimo contra-ataque, Buzz Schneider empatou para os americanos. Mas a resposta soviética foi rápida. Num contra ataque que contou com uma troca rápida de passes, Sergei Makarov ficou livre para chutar e colocar o disco nas redes de Jim Craig. Eis que nos últimos segundos do primeiro periodo, os soviéticos cometem um terrível erro. Esperando a buzina, os soviéticos já estavam com a cabeça no intervalo e, pecebendo isso, Dave Christian deu um longo chute que Tretiak defendeu, mas cedeu o rebote. Mark Johnson, com um segundo faltando para acabar o período, aproveitou a chance e empatou o jogo para os EUA. O segundo período começa com uma incrível surpresa: o técnico do time soviético Tikhonov resolveu tirar colocar no banco o goleiro Tretiak, o melhor do mundo na época e um dos melhores de todos os tempos! Em seu lugar entrou Vladimir Myshkin. A segunda etapa foi totalmente dominada pelos soviéticos, que só permitiram dois chutes a gol dos norte-americanos. Porém, toda essa vantagem foi transformada em  apenas um gol, graças a um erro da defesa dos EUA, quando os soviéticos estavam em vantagem numérica.  Aleksandr Maltsev tirou proveito de sua velocidade e devolveu à URSS a liderança no jogo, 3-2.

No terceiro período, os soviéticos mais uma vez vieram fortes, até que numa jogada de contra-ataque, Dave Silk quase recebeu um tranco de um defensor soviético e, antes de cair, conseguiu dar um passe para ninguém, mas que acabou dando certo. O defensor soviético não conseguiu dominar o disco, que sobrou para Mark Johnson soltar um chute sem chances para Vladimir Myshkin e empatar o jogo em 3-3. E o grande momento viria apenas 81 segundos depois. Numa jogada pela borda, o disco sobrou para nada mais, nada menos que o capitão Mike Eruzione, que deu um chute certeiro para dar a liderança aos EUA. Mas ainda faltava pouco mais da metade do período, e os soviéticos tinham poder para empatar e até virar o jogo. Para deixar seus jogadores mais calmos, Brooks repetia aos jogadores "Joguem o seu jogo, joguem o seu jogo!" O que se viu a seguir foi o time soviético indo pra cima, com os norte-americanos bloqueando os chutes, interceptando passes, e fazendo de tudo para impedir que os soviéticos tivessem chances de empatar. E nos poucos momentos em que os soviéticos estiveram perto de igualar o marcador, Jim Craig estava lá para fechar o gol. Os soviéticos tentaram até o fim, mesmo com a torcida da casa gritando "USA! USA!" Nos último segundos de jogo, os EUA conseguiram limpar o disco, selando a vitória histórica sobre os soviéticos. O ginásio simplesmente explodiu, e aos soviéticos só restou assistir à comemoração dos norte-americanos.

Contudo, para garantir o ouro, ainda faltava pegar a Finlândia. E a coisa não começou nada bem para os americanos naquele jogo, com o segundo período terminando em 2-1 para os finlandeses. No vestiário, mais uma vez o grupo se uniu e decidiu que, após ganharem o maior jogo da história, de forma alguma perderiam para a Finlândia. No terceiro período foram três gols dos EUA, que venceram por 4-3, garantindo a medalha de ouro, depois de 20 anos de jejum. No pódio, após o final do hino nacional, Eruzione chamou todos os jogadores, e jutntos fizeram o gesto de "primeiro". Logo após a entrega das medalhas, todos foram à Casa Branca para um encontro com o presidente, na última vez em que aquele elenco se reuniu como um time.

É claro que aquela partida entre EUA e URSS não acabou com a crise do petróleo e muito menos foi motivo para o fim da União Soviética, mas, certamente, serviu para trazer de volta ao povo norte-americano a esperança, a vontade de lutar, mostrou que milagres podem acontecer, e que é possível dar a volta por cima. O melhor exemplo era aquele bando de estudantes, que não jogavam no mesmo nível que os soviéticos, que durante tanto tempo dominaram o hóquei olímpico. Por isso, para muitos, esse foi um ponto que mudou a história dos EUA, sendo considerado pelos norte-americanos como um dos maiores momentos olímpicos. Depois do ouro em Lake Placid, os EUA só voltariam a ganhar medalhas em 2002 e, agora, em 2010, ambas de prata. Já os soviéticos não pararam de chegar ao topo, ganhando o ouro em 1984 e 1988.

E para quem está curioso em saber para onde foram os jogadores dos EUA após as Olimpíadas de Inverno de Lake Placid, aqui vai a resposta:


Jim Craig: jogou por apenas três anos na NHL (Atlanta Flames, Boston Bruins e Minnesota North Stars); 
Mike Eruzione: fez sua última partida em Lake Placid, contra a Suécia, e depois nunca mais entrou no gelo; 
John Harrington: nunca jogou na NHL. Seguiu a carreira de técnico e hoje treina o HC Asiago, time da liga italiana; 
Mike Ramsey: jogou por 17 temporadas na NHL (Detroit Red Wings, Buffalo Sabres e Pittsburgh Penguins); 
Mark Johnson: jogou por 11 temporadas na NHL e hoje é técnico do time americanos de hóquei feminino; 
Jack O’Callahan: jogou por sete temporadas na NHL; 
Bill Baker: jogou por três anos na NHL; 
Dave Silk: jogou por sete temporadas na NHL;
Eric Strobel: nunca jogou na NHL; 
Ken Morrow: ajudou o NY Islanders a ganhar a sua primeira Copa Stanley, em 1980, e ficou no time até 1983. Foi obrigado a se aposentar após uma contusão no joelho;
Bob Suter: nunca conseguiu jogar na NHL;
Dave Christian: jogou por 16 temporadas na NHL e bateu o recorde de gol mais rápido na história da NHL (sete segundos); 
Steve Janaskak: jogou apenas algumas partidas na NHL, mas não teve uma carreira sólida;
Rob McClahan: jogou por Buffalo Sabres, Harford Whalers e NY Rangers;
Mark Pavelich: jogou por seis temporadas na NHL, a maior parte delas pelo NY Rangers. Tem o recorde de mais pontos para um novato na história da franquia (76). Também jogou pelo Minnesota North Stars, onde teve Brooks como treinador novamente, e San Jose Sharks;
Buzz Schneider: nunca jogou na NHL;
Steve Christoff: jogou pelo Minnesota NorthStars, Calgary Flames e Los Angeles Kings. Se aposentou após a temporada 1983-84; 
Neal Broten: jogou por 17 temporadas na NHL. Foi o primeiro americano a fazer mais de 100 pontos em temporada regular, em 1985-86. Destaque para a Copa Stanley que ganhou com o New Jersey Devils, em 1995, e a briga que teve com Wayne Gretzky, em 1982-83;
Mark Wells: nunca conseguiu jogar uma partida na NHL;
Phil Verchota: jogou pelo Minnesota North Stars; 
Herb Brooks (Técnico): foi treinador do NY Rangers, Minnesota North Stars, New Jersey Devils e Pittsburgh Penguins. Voltou a ser técnico do time dos EUA nas Olimpíadas de 2002, quando ganhou a prata, e a França, em 1998.

Juan Valencia é administrador do Fórum Center Ice e semanalmente comanda a Rádio Center Ice, podcast em português sobre a NHL e o hóquei internacional. Além disso, também escreve para os blogs Rangers Brasil e Hóquei Europeu.

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O capitão Mike Eruzione marca o gol da vitória dos EUA sobre a URSS.

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Final de jogo e festa norte-americana em Lake Placid. O que parecia impossível aconteceu, e os invencíveis soviéticos caíram frente à garotada dos EUA.

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Página publicada em 5 de março de 2010.