Por: Jacy Borreaux

A coluna a seguir contém tristeza em doses cavalares. Se for lida ao som de "Como Estais, Amigo?", do Iron Maiden, pode até levar leitores às lágrimas. Ela também contém um apelo. Mas para chegar até ele é preciso conhecer a trágica verdade por trás de um jogador de hóquei frustrado.

Alguns disseram que agora sou tão grande quanto Ron Francis. Agradeci e respondi que isso é impossível, nem um exército de Jacy Borreaux poderia igualar a grandeza e onipresença de Ron Francis. Mas outros me condenaram. Desses vieram muitos adjetivos. Desde insensível, passando por ignorante, até chegar a estúpido.

"Querem sua cabeça", disseram. Isso me fez lembrar de uma frase que meu pai, Yves-Jacques Borreaux, me disse quando eu tinha tão somente oito anos de vida: "Filho, não importa o quão forte te batam, trata-se de quão forte possa suportar os golpes. E continuar em frente e o muito que possa levar; e continuar adiante. Levante-se filho!"

Bem, isso teria sido lindo... se fosse verdade. Mas é uma mentira! Não foi meu pai que disse isso. É uma frase do Sylvester Stallone no filme Rocky Balboa VI, que assisti ontem.

No mundo real, nunca conheci meu pai. Sempre desejei ter uma figura paterna ao lado, para me levar a algum lago congelado durante o inverno e me ensinar a patinar; para me contar histórias sobre Bobby Hull, Gordie Howe ou Maurice Richard. Mas não, sequer soube seu nome. Yves-Jacques Borreaux na verdade é meu avô, ou pelo menos era, até ele morrer, atingindo por um disco de hóquei, quando tentava me ensinar a arte dos slap shots.

Minha mãe? Tal como os torcedores do Colorado Avalanche e do Toronto Maple Leafs, minha genitora não pareceu ter muita paciência comigo. Ela também me deixou, assim que nasci. E como crescer sem o leite materno? Como me tornaria forte como Denis Potvin ou valente como Mark Messier sem o mais fundamental dos alimentos para um recém-nascido? Impossível, não?

Que o hóquei está enraizado no dia-a-dia dos canadenses, todos sabem, mas nem sempre ele está acessível a todos.

Cresci órfão e sonhando ganhar um taco da Koho. Todos os garotos da minha comunidade tinham tacos da Koho. O Bobby Orr usava um taco da Koho! Os chutes pareciam mais certeiros e rápidos quando desferidos por um taco daqueles. Meu avô era muito pobre e me criou sozinho. Ele fez um taco de hóquei para mim com os arbustos que não serviram de lenha. Prometeu-me o melhor dos tacos, mas deu-me um feito com madeira que não servia nem mesmo para cozinhar uma porção de lentilha. Mesmo assim, agradeci e reconheci o sacrifício daquele velho caquético que eu amava.

Já que eu não tinha um taco Koho, os outros garotos da minha comunidade não deixavam que eu praticasse hóquei com eles no único rinque da cidade. Gump, minha lontra de estimação, sempre me acompanhava às minhas solitárias patinagens em um distante lago, a única opção restante. Foi assim até meus 14 anos. Até que a tragédia se abateu novamente sobre meu patético mundo.

Vivíamos na mesma cabana. Eu, meu avô e minha lontra. Essa última se chamava Gump Worsley. Para quem não se lembra, Gump foi um dos melhores goleiros de todos os tempos, jogou nos Canadiens e era conhecido por sua gula e sua generosa barriga. Minha lontra era gordinha, bem alimentada, por isso meu avô sugeriu que eu a apelidasse de Gump.

Durante uma tempestade de neve no cruel inverno de 1979, ficamos impossibilitados de deixar nossa cabana. A terrível nevasca não passava, e a comida estava no fim. Certo dia, abrimos o armário, e a única coisa que havia lá dentro era uma velha edição de um jornal de Montreal, com Guy Lafleur na capa, erguendo uma das Copas Stanley que ele venceu pelos Canadiens na década de 70. Rango? Nada!

Meu avô Yves-Jacques Borreaux sempre fez tudo por mim. Ele estava faminto. Era um velho faminto. Um velho cansado e faminto. A única chance de ele continuar a viver era minha lontra. Sim, minha amada lontra.

Não existia outra alternativa: a neve já estava na altura do teto da cabana, e o inverno estava longe de acabar. A lontra Gump já não mostrava a vitalidade de sempre. Estava até mesmo indócil. Eu nunca, acreditem em mim, nunca vou me esquecer do dia em que, com lágrimas nos olhos e com uma faca pouco amolada nas mãos, sacrifiquei Gump.

Até hoje, lembro-me daqueles dois olhos negros como uma noite sem luar se apagando e de seu último suspiro. Gump não esboçou reação. Parecia aceitar o destino e saber que sua morte era nossa salvação. Ela não me odiou enquanto eu serrava sua jugular. Não existia ódio naquele coração, ao contrário de uma parcela dos leitores e até de alguns colunistas de TheSlot.com.br, que querem me ver agonizando na beira de um valão.

Ainda acordo durante noites, suado e assustado, como se estivesse vendo o olhar triste do animal que me acompanhara a tantas tardes de hóquei em um simples lago da província de Quebec. Ela amava tanto esse esporte quanto eu. Quando escutávamos pelo rádio os grande clássicos contra os Leafs ou os Bruins, ela parecia vibrar toda vez em que o Larry Robinson detonava o Borje Salming ou o Phil Esposito nas bordas. E ela acabou virando dois pratos de sopa.

Anos de sofrimento se passaram, e, em 1982, consegui, finalmente, um teste no time de hóquei da cidade. O treinador disse que eu deveria apenas melhorar meu slap shot. Pedi ajuda ao meu velho avô Yves.

Eu estava quase pronto. Meus chutes estavam tão afiados quanto os de Mike Bossy, fantástico artilheiro do New York Islanders, melhor time da NHL naquela época. Mas, no meu último dia de prática, antes do teste final, exagerei na força e acertei meu avô Yves.

Ele sangrava e agonizava. Antes mesmo que eu pudesse chamar ajuda, ele me disse suas últimas palavras: "Meu querido, nunca se esqueça, Leafs suck!"

Meu avô não conseguiu dizer mais nada. Morreu ali, nos meus braços. Eu não sabia o que era mais doloroso, se a era a perda de uma pessoa que me criou sozinho ou a de saber, ao invés de dizer que me amava, que ele plantava em mim um ódio mortal para com os vizinhos de província.

Era muito ódio mesmo. Resolvi sumir do Canadá, esquecer que existia hóquei na face da terra. Morei muitos anos em países como Bulgária, Iugoslávia e Turquia. Mas até mesmo nesses países o hóquei começou a ganhar relativa força. Até que, assistindo a um jogo de futebol pela TV, em Istambul — acho que entre Brasil e França, na Copa do Mundo de 1986 —, resolvi ir para o país do samba e do sol. Impossível que um país que goste tanto do esporte bretão se interessasse por hóquei no gelo.

Essa ilusão durou até 2002, quando vi um pequeno menino lendo uma publicação chamada TheSlot.com.br numa esquina do Brás, bairro paulistano. Do nada, vieram as imagens do lago congelado, dos tacos Koho, de Guy Lafleur, da lontra Gump e de todo um passado de desilusões...

Mas lembrei também de todo o amor que meu avô sentia pelos Canadiens e resolvi enfrentar meu medo. Tirei, à força, aquela edição da mão do garoto e li tudo, até achar o endereço daquela publicação. Chegando lá, fui informado que todos os membros da revista estavam em reunião de pauta. Alexandre Giesbrecht, Marcelo Constantino, Humberto Fernandes, Alessander Laurentino etc. Esperei no portão do complexo e, quando eles saíram, desabafei. Disse tudo! Quem eu era e como fui parar ali. Alexandre Giesbrecht, o manda-chuva, ouviu tudo com atenção e me perguntou: "Você sabe preparar caipirinhas?" Fiz um sinal de positivo com a cabeça e ele disse: "Está contratado."

Algum tempo depois, conheci uma sacoleira caxiense na rua 25 de Março e me mudei para Belford Roxo, violenta cidade da grande Rio. Mas continuei a colaborar com a revista sem tanto alarde. Isso até a fatídica coluna sobre o Toronto Maple Leafs, na última edição. Eu sempre soube que os editores da TheSlot.com.br levavam a sério as sugestões, elogios e criticas de seus leitores, mas não imaginava que era tanto. Por isso, sei que meu emprego está a perigo.

Aqui nesta revista, passei a ser alguém. Passei a saber o que é companheirismo, passei a saber o que é almoçar todos os dias e, o mais importante, passei a ter uma família. Se errei, isso faz parte, até o Sílvio Santos já errou, afinal, ele já tirou Seu Madruga da grade de programação do SBT uma vez! Não tirem TheSlot.com.br de mim! Eles só me deixam escrever aqui porque eu sou muito chato e não tenho mais nada para fazer nesta minha mesquinha vida. Sou uma vítima da sociedade. Tão inocente quanto os meninos que cheiram cola de sapateiro e depois roubam motoristas nos sinais de trânsito.

Este espaço é tudo que eu tenho. Meu coração sempre foi mais vazio que o United Center em dia de jogo dos Blackhawks e sempre bateu menos que o Patrice Brisebois. Escrever para TheSlot.com.br é minha única alegria na vida. Se for preciso, ignore-me. E não culpe a revista: eles apenas têm pena de mim! Eu não quero ser o novo Don Cherry, como aquele vândalo do Eduardo Costa falou. Eu realmente só preciso de um café da manhã com ovos fritos e bacon.

Eu amo todos vocês! Eu juro! Bem, menos o Darcy Tucker.

Jacy Borreaux na verdade é mesmo franco-canadense e gostaria de ter conhecido toda sua família.
Crédito: Yves-Jacques Borreaux
A Lontra Gump: ela amava o hóquei e sacrificou sua vida para que o resto da família Borreaux continuasse a viver.
Crédito: Zé Ferreira, Ceará
Torcedor protesta em frente à sede do Rocky Mountain News. Pra ele, Borreaux deve morrer para que o hóquei viva.
Crédito: Zé Ferreira, Ceará
Flyers contra Borreaux: torcedor solitário exibe cartaz anti-Borreaux na Filadélfia. Notem que ele não escreveu o nome do escroque corretamente. É Jacy BorreaUx.
Crédito: Zé Ferreira, Ceará
Vandalismo em Estocolmo: fãs de Mats Sundin picharam edifício histórico no centro da capital sueca. Policiais cercam o local para evitar mais distúrbios envolvendo torcedores dos Leafs.
Crédito: Jacy Borreaux
No Brasil, muita confusão em frente à sede de TheSlot.com.br em São Paulo. Centenas de edições foram queimadas por rebeldes anti-Borreaux, que fizeram o V da vitória.
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Página publicada em 28 de fevereiro de 2007.