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Por: Thiago Leal

A semana começou com uma data simbólica. O 8 de março não é conhecido como "Dia Internacional da Mulher" simplesmente porque alguém chegou e decidiu de forma aleatória que as mulheres teriam um dia específico no ano para reinvidicar seus direitos. A data, em si, é um protesto a um massacre ocorrido durante a Segunda Revolução Industrial, quando operárias de uma fábrica em Nova Iorque foram trancadas na indústria onde trabalhavam e queimadas vivas, tudo porque decidiram protestar contra as condições desumadas de trabalho sob as quais eram empregadas.

Tá, mas o que isso tem a ver com hóquei no gelo? Tem a ver que fizemos uma super edição olímpica, mas, entre os vários artigos sobre os Jogos de Vancouver, apenas um falou sobre o torneio feminino. E eu, que deveria ter tido pelo menos ter tido uma coluna sobre o tema, não fui responsável o bastante para escrevê-la.

Eu já escrevi sobre o tema quando era um mero estagiário sem direito a vale-refeição e vale-transporte aqui na redação. Mas foi um artigo insípido, sem profundidade e bastante resumido.

Espero, pelo menos, que consiga me redimir com este artigo.

O hóquei feminino
O pioneirismo da versão feminina do maior esporte do mundo é atribuída a ninguém menos que Isobel Stanley, filha de Frederick Stanley, o Governador Geral do Canadá de 1888 a 1893 e doador do troféu que ficou conhecido como Copa Stanley. Dizem até que Isobel foi uma das maiores entusiastas da ideia de seu pai de criar uma Copa para premiar os campeões do esporte, ajudando Frederick Stanley a executar o projeto. Um dos primeiros registros oficiais de hóquei feminino é uma histórica foto de Isobel jogando hóquei com suas amigas em um lago congelado no grande jardim do Salão Rideau, residência oficial do Governador. A fotografia data de meados de 1890. Em 11 de fevereiro de 1891 o Ottawa Citizen publicou uma nota sobre um jogo entre dois times de sete jogadoras. Foi a primeira notícia sobre uma partida disputada entre mulheres divulgada num veículo de imprensa. Em 1894 o time feminino da Universidade McGill iniciou suas atividades. O primeiro troféu feminino surgiu em 1920, doado por Isobel Brenda Meredith, Primeira Dama de Montreal. Era a Copa Lady Meredith.

O mais estranho disso tudo é perceber que mesmo 120 anos depois, o amadorismo do hóquei feminino não evoluiu quase nada — se comparado, por exemplo, o que é o hóquei masculino depois de todo esse tempo. Tanto é que a versão masculina do esporte entrou no programa olímpico em 1920, enquanto a feminina apenas em 1998. Já o Campeonato Mundial, que acontece de forma independente para homens desde 1930, só veio a ter seu equivalente feminino em 1990.

Se mesmo depois da criação do Mundial feminino e da inclusão das mulheres nos Jogos Olímpicos de Inverno, o amadorismo ainda perdura, imagine os anos que intercalaram esse processo são como um grande limbo na história do esporte. Um grande período onde pouca coisa aconteceu e menos ainda foi noticiada.

Karen Koch
Talvez seja um exagero dizer que o intervalo entre o surgimento do hóquei feminino e sua inclusão nos Campeonatos Mundiais e Jogos Olímpicos não passou de um grande hiato sem que nada acontecesse. As associações de hóquei feminino proliferaram-se pela América do Norte e o reconhecimento profissional veio na temporada 1969-70, quando a extinta United States Hockey League (USHL) autorizou que o Marquette Iron Rangers contratasse Karen Koch, uma goleira de apenas 18 anos de idade. Sim, Koch foi encarregada de jogar num time masculino.

Ela fez sua estreia numa sessão de treinos dos Iron Rangers, na Arena de Gelo Palestra, em Marquette, que tinha o objetivo de recrutar novos atletas para o time. Bob Glantz, fotógrafo acostumado a cobrir os jogos dos Rangers, ficou impressionado quando viu aquela garota no rinque. Os Rangers tinham goleiro titular e reserva. Dos dois aspirantes a terceiro goleiro, um não conseguia pegar nada. Mas o outro era bom em parar chutes e tinha excelentes reflexos. "O outro", na verdade, era Koch. O técnico Leonard Brumm só percebeu que se tratava de uma mulher quando Barry Cook, capitão do time, o informou. Brumm gostou de suas habilidades e começava a história da primeira jogadora de hóquei profissional do mundo.

O primeiro contrato de Koch foi assinado no valor de US$40,00 por jogo. Maior que os US$25,00 que geralmente eram oferecidos aos calouros, mas bem menor que os US$100,00 que os veteranos recebiam. Por sinal, eles, os veteranos, obviamente, protestaram contra a presença de uma mulher no time. Mas admitiam que ela era uma boa goleira. O ponta esquerda Robert Caster dizia o quanto se surpreendeu por ver que ela ficava de pé, esperando os chutes, sem medo nenhum.

Mais tarde Koch deixou o Marquette por discussões com o treinador e foi jogar em times da região de Ontário, até que a Associação de Hóquei Amador do Canadá proibiu de jogá-la entre homens.

Além de jogadora de hóquei, Koch era jogadora de lacrosse, faixa preta em judô, faixa marrom em jiu-jitsu e se formou em Literatura na Universidade Estadual de Wayne, com mestrado também em Literatura na Universidade de Dayton.

O legado de Koch e o pseudo-profissionalismo
A despeito de seu pioneirismo, Koch não é uma atleta reconhecida nos Estados Unidos da América nem no Canadá. O "fenômeno Koch" quase se repetiu nos anos 90, quando o Tampa Bay Lightning colocou Manon Rhéaume como goleira em jogos de pré-temporada contra o St. Louis Blues e o Boston Bruins. Rhéaume não chegou a jogar na NHL e Phil Esposito, gerente geral do time à época, admitiu que não passou de um golpe publicitário. Seu irmão, Pascal, por outro lado, chegou a jogar na NHL e ser campeão com o New Jersey Devils.

Jogadoras de hóquei em ligas menores masculinas não é tão incomum na América do Norte. A defensora Angela Ruggiero, da Seleção Estadunidense, foi a primeira jogadora de linha a disputar jogos por uma equipe masculina nos Estados Unidos — o Tulsa Oilers, da CHL, em partida contra o Rio Grande Valley Killer Bees em 2005. Antes de Ruggiero, Hayley Wickenheiser, capitã da seleção canadense, foi pioneira em jogos na linha quando disputou partidas com o Kirkkonummi Salamat da Liga Finlandesa em 2003.

Independentemente disso, o esporte feminino evolui devegar demais. Talvez porque colocar uma mulher jogando entre os homens não seja a melhor tática. Esse tipo de medida serve mais como uma publicidade, e as meninas acabam sendo recrutadas mais por chamar atenção de que por suas habilidades, o que não é bom para a evolução de seu jogo. O ideal seria o desenvolvimento de ligas profissionais femininas.

As aventuras das ligas femininas
Apesar das condições desfavoráveis, o Departamento das Indústrias do Canadá afirma que o hóquei feminino cresceu 350% nos últimos dez anos, fazendo dele o esporte para mulheres que mais cresce no mundo. Talvez em número de clubes e de praticantes. Mas em termos de estrutura ainda deixa a desejar.

Até 2007 haviam duas ligas maiores de hóquei feminino profissional: a National Women's Hockey League (NWHL) e a Western Women's Hockey League (WWHL), que surgiu a partir de equipes que deixaram a NWHL. Paralelamente a isso, ocorre desde 1982 o Esso Women's Nationals, campeonato de hóquei envolvendo equipes de todo o país, que premiava o campeão com a Copa Abby Hoffman.

Por pouco a Copa Stanley não foi entregue a uma equipe feminina — em 2005, época do locaute, a então Governadora Geral, Alisson Clarkson, propôs que, de forma interina, a Copa Stanley fosse entregue a um time feminino, vencedor de um torneio interligas realizado entre a NWHL e WWHL. Os fãs e jogadoras preferiram a criação de um troféu próprio, surgindo assim a Copa Clarkson, nomeada, assim como a Copa Stanley, em homenagem ao Chefe de Estado do país. A campeã da NWHL e a campeã da WWHL deveriam, encerrando seus playoffs, disputarem os playoffs da Esso Women's Nationals, que definiria o campeão nacional. O problema era a questão logística das duas ligas e da Esso Women's Nationals, com calendários divergentes entre si. A primeira Copa Clarkson acabou se tornando um torneio de seleções, com o Canadá derrotando a Suécia na decisão, em 2006. A NWHL acabou encerrando atividades em 2007 e em seu lugar surgiu a Canadian Women's Hockey League (CWHL). Até que um acordo entre CWHL e WWHL surgisse, as equipes das duas ligas juntavam-se às demais na disputa da Copa Abby Hoffman pela Esso Women's Nationals.

A primeira Copa Clarkson entregue a clubes ocorreu apenas em 2009 com o Montreal Stars da CWHL derrotando o Minnesota Whitecaps da WWHL na decisão.

Hoje a CWHL e a WWHL são as únicas ligas maiores de hóquei feminino em atividade na América do Norte e contam com, respectivamente, seis e cinco times.

CWHL: Brampton Canadette Thunder, Burlington Barracudas, Missisauga Chiefs, Montreal Stars, Ottawa Senators e Vaughan Flames. Todos os times são da província de Ontário, com exceção do Montreal Stars, da província do Quebec.

WWHL: BC Breakers, Calgary Oval X-Treme, Edmonton Chimos, Minnesota Whitecaps e Strathmore Rockies.

Campeonatos Mundiais, Jogos Olímpicos e Copa das Três/Quatro Nações
Conforme Rafael Roberto bem falou, Canadá e Estados Unidos detêm toda hegemonia do hóquei feminino, com larga vantagem canadense. A Finlândia aparece timidamente no terceiro lugar, com a Suécia se manifestando vez por outra. O Campeonato Mundial Feminino é disputado desde 1990 e, em 12 edições (o torneio não ocorre necessariamente anualmente), são nove medalhas de ouro para o Canadá e três para os Estados Unidos. As duas se invertem no número de medalhas de prata, ou seja, todas as 12 finais foram feitas entre as duas seleções. A Finlândia venceu nove das medalhas de bronze, a Suécia duas e a Rússia apenas uma. China e Suíça já ficaram entre as quatro semifinalistas, embora a hegemonia da disputa pelo bronze seja entre finlandesas e suecas.

Em 1996 foi criada a Copa das Três Nações, torneio anual entre Canadá, Estados Unidos e Finlândia. Em 2000 o torneio virou a Copa das Quatro Nações, com a entrada da Suécia. Em 2001 os Estados Unidos não participaram. E de 2002 em diante, todo ano as quatro se encontram. Em 14 edições, 11 ouros para o Canadá e três para os Estados Unidos. Nessas três ocasiões em que não foram campeãs, o Canadá ficou com a prata. Já os ouros canadenses foram todos sobre os Estados Unidos, com exceção de 2001, quando as americanas não participaram, por isso a prata ficou com as Finlandesas.

Já nos Jogos Olímpicos, as americanas ficaram com o primeiro ouro, com prata para o Canadá e bronze para a Finlândia. nos Jogos de Nagano em 1998. Em Salt Lake City 2002, ouro para o Canadá, prata para os Estados Unidos e bronze para a Suécia. Na edição de 2006, em Turim, as suecas surpreenderam ao passar pelos Estados Unidos na semifinal e ficaram com a medalha de prata, perdendo na final para, claro, o Canadá.

Vancouver 2010
O torneio de 2010 seguiu o mesmo modelo de 2002 e 2006, com oito equipes divididas em dois grupos de quatro. Pelo Grupo A jogaram Canadá, Suécia, Suíça e Eslováquia e pelo Grupo B, Estados Unidos, Finlândia, Rússia e China.

Tanto Canadá quanto Estados Unidos comprovaram seu favoritismo liderando seus grupos com larga vantagem. O Canadá, por exemplo, encerrou a primeira fase com 41 gols marcados e apenas dois gols sofridos. Foi 18-0 na eslováquia, 10-1 na Suíça e 13-1 na Suécia. Aliás, a Suécia foi a única seleção no torneio que conseguiu terminar um período, o terceiro, empatada com o Canadá.

Já as americanas passaram de fase com 12-1 na China, 13-0 na Rússia e 6-0 na Finlândia. Foram 30 gols marcados e um gol sofrido.

Na semifinal, os EUA derrotou a Suécia por 9-1 enquanto o Canadá passou pela Finlândia, 5-0. Isso deixa o hóquei feminino naquele patamar estabelecido há anos: a final sempre será Canadá e Estados Unidos. E a disputa do bronze, Finlândia e Suécia. As canadenses confirmaram seu favoritismo e ganharam o ouro com 2-0 sobre as americanas, assim como as finlandesas ratificaram seu posto de teceira seleção do mundo e ganharam o bronze ao vencer as suecas por 3-2, na prorrogação, melhor jogo do torneio.

Embora Meghan Agosta, do Canadá, tenha sido a jogadora mais valiosa do torneio, a grande revelação foi a suíça Stefanie Marty. A atacante foi terceira maior pontuadora da competição, na frente de qualquer americana, sueca e finlandesa. Foram nove gols e duas assistências. Injustamente não entrou na seleção ideal do torneio.

A grande polêmica da final ficou por conta das canadenses que comemoraram o ouro com champanhes e charutos dentro da quadra. As meninas tiveram que pedir desculpas após o "incidente", com todo aquele (hipócrita) papo de espírito esportivo, etc. Wayne Gretzky, por exemplo, sempre foi um confesso adorador e colecionador de charutos. Será que ele teve que se desculpar alguma vez por causa disso?

Pós-Vancouver 2010
Quando a rede Record, durante sua transmissão dos Jogos de Inverno, comparou a situação do hóquei feminino à do futebol feminino, conseguiu ser muito mais feliz que as já comentadas comparações entre regras dos dois esportes. Porque a situação entre os dois esportes para mulheres fora do gelo é bastante parecida.

A evolução do jogo para as mulheres é tímida e por mais que ganhe um pouco mais de atenção durante os Jogos Olímpicos, a mania só dura aquele breve período. O papo de mudança existe durante os Jogos, e sempre vemos jogadoras que são mães de família e, por serem amadoras ou semi-profissionais, têm outros empregos e jogam meramente por prazer.

Então não entendo qual o dever que elas têm para com o espírito esportivo. São amadoras! E nem venham com essa história de que o espírito olímpico é amador, porque hoje em dia todo mundo ali está patrocinado. Se o espírito esportivo é motivado pelo prazer, as moças jogam por prazer. Deveriam ter direito a comemorar com aquilo que der prazer também, afinal de contas, nem as champanhes e nem os charutos são proibidos pelo código antidoping.

Hoje em dia, após o ouro canadense, que foi noticiado no Yahoo!, no Terra, no site da ESPN etc, não se fala mais em hóquei feminino, nas ligas femininas, etc. O Pós-Vancouver é apenas a volta à normalidade e o hóquei feminino continua com o amadorismo.

Um esporte que surgiu com a filha da maior autoridade do Canadá, responsável pela maior glória esportiva no mundo, que é a Copa Stanley, merecia um pouco mais de respeito e atenção.

Thiago Leal agradece a Mary por ter lhe dado um puxão de orelha.
Brian McFarlane
De branco, Isobel Stanley joga com as amigas no Salão Rideau, em Ottawa.

Arquivo TheSlot.com.br
O time feminino de Gore Bay em 1921.

Bob Glantz
A goleira Karen Koch foi pioneira em jogar contra os homens.
McGill University
Jogadoras do Montreal Stars com a Copa Clarkson.
(21/03/2009)
Alex Livesey/AFP
A farra com charutos, champanhe e cerveja não pegou bem.
(25/02/2010)
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Página publicada em 12 de março de 2010.