Em 1982 a NHL assistiu a uma das mais sensacionais partidas de hóquei
sobre o gelo de todos os tempos. Estou falando do Milagre
de Manchester, nome de batismo daquela que talvez tenha sido a virada
mais sensacional da história da NHL, quando o Los Angeles Kings virou
uma partida contra o Edmonton Oilers nos playoffs, depois de estar perdendo
por 5-0. O jogo não foi somente (?) isso, houve mais lances de emoção
absurda. Se você não conhece, leia a matéria
publicada em nossa edição n.º 57, procure o vídeo.
Alguns anos depois de publicarmos essa matéria, precisamente em 2007,
ocorreu o que viemos a chamar de "Milagre
de Manchester light" em nossa capa. O mesmo LA Kings virou uma partida
contra o Dallas Stars que também parecia perdida: estava 4-0 para o
Dallas quando faltavam sete minutos para o fim. Em três minutos os Kings,
carregados por Anze Kopitar, empataram o jogo. Logo a seguir, os Kings
viraram o placar. Foram cinco gols em cinco minutos. Mas Mike Modano
empatou para os Stars quando faltava um minuto para o fim. Coisa de
louco. Quem venceu? Claro que foram os Kings, senão não era história
pra ser relembrada assim: Kopitar marcou o gol da virada final na prorrogação.
Naquela mesma temporada de 2007-08 o Montreal Canadiens empatou um jogo
em que chegou a estar perdendo por 5-0 do New York Rangers, mas a
virada só veio na disputa de pênaltis.
Na última segunda-feira o Chicago Blackhawks protagonizou uma nova virada
digna de entrar para a história. E o melhor: a vitória veio antes da
disputa de pênaltis, durante o jogo, na prorrogação. A vítima da vez
foi o Calgary Flames.
Contando com uma atuação lamentável do goleiro Cristobal Huet, os Flames
abriram nada menos que 5-0 no primeiro período. Huet levou três gols
em cinco disparos — e num espaço de um minuto —, e foi logo sacado,
com sete minutos de jogo. Antti Niemi entrou, levou outros dois, mas
ficou até o fim. O Chicago conseguiu marcar um golzinho ainda naquele
período.
Vejam bem, o placar contava 5-1 no primeiro período! Mais que isso:
os cinco gols foram marcados em pouco mais que cinco minutos. Pior ainda:
o jogo era em Chicago, com a torcida já naturalmente vaiando o time.
Aqui vale um parêntese: eu me lembro de uma entrevista do Chris Chelios
em que ele destacava como uma das diferenças entre Chicago e Detroit
justamente isso, a torcida. Enquanto em Chicago os torcedores são mais
imperdoáveis (eles vaiam mesmo), em Detroit os torcedores são mais compreensíveis
e tendem a apoiar mais o time. Palavras dele, não minhas.
Naquele intervalo, era absolutamente natural dizer que o time tinha
acabado com o jogo já naquele período. Era absolutamente natural que
o Calgary se segurasse dali em diante, até sofrendo mais um ou dois
gols. Era natural que os Hawks jogassem como franco-atiradores, tendo
o jogo dado como perdido.
Mas os Flames exageraram na dose, exageraram no "amolecimento". Simplesmente
pararam no jogo. Convidaram os Blackhawks não somente para a festa,
mas para tomar conta da casa e deitar na cama.
Veio o segundo período e o Chicago marcou três vezes em sete minutos,
esquentando vez a partida. Atônito, o craque Jarome Iginla tentou mudar
o panorama (ou tentou extravasar sua frustração?) arrumando briga com
Troy Brouwer. Não funcionou, o Calgary continuava um time de uma apatia
incompatível com os 5-0 alcançados no período anterior.
Veio o terceiro período e Patrick Sharp empatou. O desespero era latente
entre os Flames, que conseguiram escapar para a prorrogação, apenas
para ver o defensor Brent Seabrook passear em frente à defesa canadense
com o disco dominado e disparar para a vitória de 6-5.
Não há escapatória: para os que viraram o jogo, é uma partida inesquecível,
um feito hercúleo a se guardar na memória e contar aos filhos e netos.
Para os que perderam, é uma humilhação. Humilhação sim, não há outra
palavra para classificar um time que perde um jogo em que vencia por
5-0 ainda no primeiro período.
Os Flames já vinham com essa prática nociva, construindo vantagens e
sentando-se sobre elas de forma vulnerável, calcando-se em Miikka Kiprusoff.
Ontem tudo isso tornou-se superlativo, inclusive e sobretudo o revés.
Que fique claro, não há padrão de comparação entre esta vitória do Chicago
e o Milagre de Manchester. Chega a ser heresia eu colocar os dois eventos
num mesmo texto, ou ainda na mesma frase. Ainda que a referência seja
inevitável, a distância entre ambos os feitos é abissal. Fora outros
pontos, o jogo do Milagre de Manchester era jogo de playoffs, e o derrotado
foi o time que viria a se tornar uma dinastia — o Edmonton Oilers de
Wayne Gretzky. O jogo de segunda-feira foi um mero jogo de início de
temporada entre dois times ainda se esquentando.
Mesmo sendo um mero jogo de início de temporada, é o tipo de vitória
que alavanca um time (Blackhawks) e destrói a confiança de outro (Flames).
No vestiário do Calgary, ao menos da boca para fora, a derrota era tratada
como uma chamada, um toque de alvorada, qualquer coisa assim. Se os
jogadores assimilarem isso, ok. Mas a derrota foi muito mais que isso,
e certamente cada jogador de cada um dos times sabe disso.
Chicago e Calgary ainda se enfrentarão outras vezes nesta temporada,
possivelmente até nos playoffs, e é certo que essa virada vai estar
nas primeiras páginas da memória de cada jogador das duas equipes.
Foi a maior virada da história do Chicago e igualou a maior virada na
história da NHL.
Marcelo Constantino recomenda J.M. Coetzee.