Não, ele não foi um
atleta medíocre; longe
disso. Mas diante do
que fez na NHL, comparado às expectativas
nele depositadas,
a carreira de Alexandre
Daigle é sinônimo
de fracasso. Ele é lembrado em todos
os recrutamentos como exemplo de
desperdício, até mesmo por analistas
de fundo de quintal, como este que vos
escreve. Daigle, porém, acabou rendendo
mudanças significativas no processo de
recrutamento da NHL. Mudanças perto
de ser consideradas antiquadas.
Os Senators, tais quais uma virgem
donzela, deixaram-se seduzir facilmente
pelas falsas promessas que
circulavam pela imprensa. Daigle seria
um prospecto imperdível, alguém
que poderia mudar os rumos de uma
organização. Não foram poucos os
que, naquela campanha de 1992-93, se
lembraram das mudanças que aconteceram
nos Penguins, então monarcas
da NHL. O bicampeonato do
time da Pensilvânia não teria sido
possível sem a canonizável figura
de Mario Lemieux, obtido quase
uma década antes graças a uma
campanha para lá de suspeita. Ao
contrário dos Penguins, cuja diretiva
adotara em 1983-84 medidas para um
afundamento completo, o Ottawa era uma equipe
de expansão, desabençoada pelos
deuses do hóquei e ruim por natureza.
Muitas derrotas eram esperadas, mas
a turma se superou.
O time começou vencendo os Canadiens
no acanhado Ottawa Civic Centre
(o que gerou no dia seguinte em um
jornal local a manchete "Talvez Roma
tenha sido construída em um dia"),
mas aquela seria uma das poucas alegrias
de uma catastrófica temporada.
Além daquele festivo retorno da cidade
canadense ao hóquei da NHL, apenas
nove vitórias foram conquistadas.
Mesmo entre tanta inaptidão, um dos
donos soltou a frase que marcaria ainda
mais aquela campanha. Após uma
rara vitória sobres os Nordiques, já
em fevereiro, um membro da alta cúpula
deu uma declaração que deixou
muitos curiosos: "Apenas dois times
conquistarão seus objetivos ao final
da temporada." Óbvio que não era da
Copa que Bruce Firestone falava. Era
da febre Alexandre Daigle. O objetivo
a ser conquistado pela sua organização:
Daigle ou morte!
O sucesso diante do New York Islanders
por 5-3, em 10 de abril, foi a única
vitória dos Sens como visitantes. Uma
marca pra fazer inveja até mesmo no
torcedor do Atlanta Thrashers. Mas
um resultado que colocava em risco
o "projeto Daigle". Mas os Senators
não estavam sozinhos nessa briga de
desnutridos chihuahuas. Não mesmo.
Havia também um peixe voraz por
derrotas seguindo a mesma correnteza.
Os Sharks perderiam 71
jogos naquela mesma temporada,
um recorde.
Ninguém esperava que um time
cujo artilheiro era o simplório
Norm Maciver fosse vencer um
bom time como aquele dos Islanders — que acabariam eliminando
os Penguins nos playoffs — em pleno
Nassau Coliseum. Aquela rara
vitória fazia com que os Senators
empatassem em pontos com os
Sharks. A única "vantagem" do Ottawa
era ter uma vitória a menos.
Enquanto Daigle fazia miséria
nas ligas juniores canadenses, as
duas equipes enxergaram a reta
final de em uma corrida em que quem
praticasse o hóquei de forma mais depreciável
levaria um grande prêmio.
Com ambos os times com 24 pontos,
os Senators fecharia a temporada em
14 de abril, frente aos Bruins. Um dia
depois os Sharks enfrentariam os
Flames. Um mísero empate, e Daigle
escaparia das mãos dos Sens, já que os
Sharks não seriam loucos, e nem capazes,
de vencer o Calgary fora de casa. É
óbvio que os Bruins saíram vencedores.
A corrida estava ganha. Alguns ignoraram
as suspeitas, afirmando que
a ruindade daquele elenco dispensava
um suposto esquema de derrotas.
Até que a eterna combinação cerveja
mais animação falou mais alto.
Firestone deixaria escapar, meses
depois daquela bendita derrota, que
mandaria sua equipe até mesmo retirar
o goleiro, se isso ajudasse na
tarefa de perder para os Bruins. A
língua falou demais justamente em
um clube noturno em Quebec, cidade
onde, um dia antes, o recrutamento
havia sido realizado, na arena Colisée.
Feliz da vida por ter conseguido
o menino Daigle, ele ignorou até mesmo
um bom contingente de repórteres
presentes ao local. O jornal Ottawa
Citizen jogou toda a obra fisiológica
de Firestone no ventilador, e, sob fogo
cruzado da NHL, o figurão disse que
tudo foi fruto de uma declaração sem
muita importância, produzida por ele
após "oito, talvez nove cervejas". Mas
o mesmo Firestone confirmou reuniões
que teve com quatro jogadores,
que foram até ele debater sobre como
deveriam buscar o "melhor" para o
time naquele último jogo.
Segundo a imprensa, um acordo teria
sido feito. Os quatro arcanjos da
derrota facilitariam o esquema caso
tivessem a certeza de que retornariam
para a temporada seguinte, o que acabou
acontecendo. Todos com contrato
renovado. Firestone não fez muito esforço
para negar esse rumor, e até hoje
os nomes dos "delivery boys" jamais
vieram à tona.
O defensor Brad Shaw foi um dos
poucos a tentar fazer cartaz e salvar
sua honra: "Quando a temporada
entrou na reta final, sabíamos
que, se a direção tivesse uma escolha,
seria a de que deveríamos
perder o resto de
nossos jogos. Mas
havia entre a gente
muito orgulho
e brio, e o melhor
era fazer nossos
olheiros trabalhar
para buscar
um alternativa a Daigle." Talvez
esse bolsão de honestidade tenha
levado Firestone a fazer uma
proposta inusitada aos Sharks e à NHL. A primeira escolha iria
para a equipe que mais somasse
pontos nos jogos entre elas. Assim,
um pouco da honra poderia ser
salva. Os Sharks negaram o pedido
prontamente. Não restou outro opção
no cardápio: perder era preciso.
A conclusão disso tudo foi um Gary
Bettman muito fulo da vida. Pisando
nas tamancas que sustentam sua ignorância ímpar, ele nada pôde fazer
contra aquela corrida suja em específico,
mas depois decidiu pelo óbvio.
Ou seja, uma loteria no recrutamento
na NHL. E hoje esse mesmo sistema
começa a parecer obsoleto. Resta aos
que são contra a artimanha a esperança
de que novos Daigles punam
as organizações que se utilizem dessa
faceta obscura do jogo. Tudo para
que a mediocridade não seja premiada.
Todos nos lembramos da carreira
que Daigle construiu após receber um
contrato de proporções bíblicas antes
mesmo de entrar no gelo. Na verdade,
nós nos lembramos de pouca coisa
que ele tenha feito.
Arquivo TheSlot.com.br Nem sempre a "malandrage" dá certo. Os Sens pagaram US$ 100 mil de multa pelas declarações suspeitas de Firestone. E, pior, levaram uma" farsa" para casa. Novos Daigles: isso é o que desejam os anti-entrega de jogos. |