Por: Eduardo Costa

Não, ele não foi um atleta medíocre; longe disso. Mas diante do que fez na NHL, comparado às expectativas nele depositadas, a carreira de Alexandre Daigle é sinônimo de fracasso. Ele é lembrado em todos os recrutamentos como exemplo de desperdício, até mesmo por analistas de fundo de quintal, como este que vos escreve. Daigle, porém, acabou rendendo mudanças significativas no processo de recrutamento da NHL. Mudanças perto de ser consideradas antiquadas.

Os Senators, tais quais uma virgem donzela, deixaram-se seduzir facilmente pelas falsas promessas que circulavam pela imprensa. Daigle seria um prospecto imperdível, alguém que poderia mudar os rumos de uma organização. Não foram poucos os que, naquela campanha de 1992-93, se lembraram das mudanças que aconteceram nos Penguins, então monarcas da NHL. O bicampeonato do time da Pensilvânia não teria sido possível sem a canonizável figura de Mario Lemieux, obtido quase uma década antes graças a uma campanha para lá de suspeita. Ao contrário dos Penguins, cuja diretiva adotara em 1983-84 medidas para um afundamento completo, o Ottawa era uma equipe de expansão, desabençoada pelos deuses do hóquei e ruim por natureza. Muitas derrotas eram esperadas, mas a turma se superou.

O time começou vencendo os Canadiens no acanhado Ottawa Civic Centre (o que gerou no dia seguinte em um jornal local a manchete "Talvez Roma tenha sido construída em um dia"), mas aquela seria uma das poucas alegrias de uma catastrófica temporada. Além daquele festivo retorno da cidade canadense ao hóquei da NHL, apenas nove vitórias foram conquistadas. Mesmo entre tanta inaptidão, um dos donos soltou a frase que marcaria ainda mais aquela campanha. Após uma rara vitória sobres os Nordiques, já em fevereiro, um membro da alta cúpula deu uma declaração que deixou muitos curiosos: "Apenas dois times conquistarão seus objetivos ao final da temporada." Óbvio que não era da Copa que Bruce Firestone falava. Era da febre Alexandre Daigle. O objetivo a ser conquistado pela sua organização: Daigle ou morte!

O sucesso diante do New York Islanders por 5-3, em 10 de abril, foi a única vitória dos Sens como visitantes. Uma marca pra fazer inveja até mesmo no torcedor do Atlanta Thrashers. Mas um resultado que colocava em risco o "projeto Daigle". Mas os Senators não estavam sozinhos nessa briga de desnutridos chihuahuas. Não mesmo. Havia também um peixe voraz por derrotas seguindo a mesma correnteza. Os Sharks perderiam 71 jogos naquela mesma temporada, um recorde.

Ninguém esperava que um time cujo artilheiro era o simplório Norm Maciver fosse vencer um bom time como aquele dos Islanders — que acabariam eliminando os Penguins nos playoffs — em pleno Nassau Coliseum. Aquela rara vitória fazia com que os Senators empatassem em pontos com os Sharks. A única "vantagem" do Ottawa era ter uma vitória a menos.

Enquanto Daigle fazia miséria nas ligas juniores canadenses, as duas equipes enxergaram a reta final de em uma corrida em que quem praticasse o hóquei de forma mais depreciável levaria um grande prêmio. Com ambos os times com 24 pontos, os Senators fecharia a temporada em 14 de abril, frente aos Bruins. Um dia depois os Sharks enfrentariam os Flames. Um mísero empate, e Daigle escaparia das mãos dos Sens, já que os Sharks não seriam loucos, e nem capazes, de vencer o Calgary fora de casa. É óbvio que os Bruins saíram vencedores. A corrida estava ganha. Alguns ignoraram as suspeitas, afirmando que a ruindade daquele elenco dispensava um suposto esquema de derrotas.

Até que a eterna combinação cerveja mais animação falou mais alto. Firestone deixaria escapar, meses depois daquela bendita derrota, que mandaria sua equipe até mesmo retirar o goleiro, se isso ajudasse na tarefa de perder para os Bruins. A língua falou demais justamente em um clube noturno em Quebec, cidade onde, um dia antes, o recrutamento havia sido realizado, na arena Colisée. Feliz da vida por ter conseguido o menino Daigle, ele ignorou até mesmo um bom contingente de repórteres presentes ao local. O jornal Ottawa Citizen jogou toda a obra fisiológica de Firestone no ventilador, e, sob fogo cruzado da NHL, o figurão disse que tudo foi fruto de uma declaração sem muita importância, produzida por ele após "oito, talvez nove cervejas". Mas o mesmo Firestone confirmou reuniões que teve com quatro jogadores, que foram até ele debater sobre como deveriam buscar o "melhor" para o time naquele último jogo.

Segundo a imprensa, um acordo teria sido feito. Os quatro arcanjos da derrota facilitariam o esquema caso tivessem a certeza de que retornariam para a temporada seguinte, o que acabou acontecendo. Todos com contrato renovado. Firestone não fez muito esforço para negar esse rumor, e até hoje os nomes dos "delivery boys" jamais vieram à tona.

O defensor Brad Shaw foi um dos poucos a tentar fazer cartaz e salvar sua honra: "Quando a temporada entrou na reta final, sabíamos que, se a direção tivesse uma escolha, seria a de que deveríamos perder o resto de nossos jogos. Mas havia entre a gente muito orgulho e brio, e o melhor era fazer nossos olheiros trabalhar para buscar um alternativa a Daigle." Talvez esse bolsão de honestidade tenha levado Firestone a fazer uma proposta inusitada aos Sharks e à NHL. A primeira escolha iria para a equipe que mais somasse pontos nos jogos entre elas. Assim, um pouco da honra poderia ser salva. Os Sharks negaram o pedido prontamente. Não restou outro opção no cardápio: perder era preciso.

A conclusão disso tudo foi um Gary Bettman muito fulo da vida. Pisando nas tamancas que sustentam sua ignorância ímpar, ele nada pôde fazer contra aquela corrida suja em específico, mas depois decidiu pelo óbvio. Ou seja, uma loteria no recrutamento na NHL. E hoje esse mesmo sistema começa a parecer obsoleto. Resta aos que são contra a artimanha a esperança de que novos Daigles punam as organizações que se utilizem dessa faceta obscura do jogo. Tudo para que a mediocridade não seja premiada. Todos nos lembramos da carreira que Daigle construiu após receber um contrato de proporções bíblicas antes mesmo de entrar no gelo. Na verdade, nós nos lembramos de pouca coisa que ele tenha feito.

Eduardo Costa ouve Andres calamaro, el salmón!
Arquivo TheSlot.com.br
Nem sempre a "malandrage" dá certo. Os Sens pagaram US$ 100 mil de multa pelas declarações suspeitas de Firestone. E, pior, levaram uma" farsa" para casa. Novos Daigles: isso é o que desejam os anti-entrega de jogos.
Edição Atual | Edições anteriores | Sobre TheSlot.com.br | Comunidade no Orkut | Contato
© 2002-09 TheSlot.com.br. Todos os direitos reservados. Permitida a reprodução do conteúdo escrito, desde que citados autor e fonte.
Página publicada em 25 de março de 2009.