Por: Eduardo Costa

Entre a idolatria e o ódio. Nenhuma posição dentro do hóquei rende comentários tão maleáveis quanto a de goleiro.

O herói de hoje é o vilão de amanhã. Às vezes essa mudança de "status" acontece em segundos, dentro de uma mesma partida. Você pode não se lembrar daquele seu atacante, que desperdiçou uma oportunidade incrível em plena prorrogação daquela série extremamente equilibrada, mas certamente se lembra daquele disco que veio do meio do gelo e transformou seu guarda-metas no pior dos seres humanos.

Poucos arqueiros resistiram a essa tênue linha dentro da NHL e construíram uma carreira que não se apagará com o tempo. Martin Brodeur é um deles, e ele vem escrevendo brilhantes passagens de seu legado nesse exato momento. Somos testemunhas da história grande sendo feita.

E como restam ainda alguns bons anos de carreira pela frente, é bem provável que as marcas que Brodeur vem atingindo ganhem gordura e permaneçam soberanas por um bom tempo no livro dos recordes.

Quis o destino que ele igualasse as 551 vitórias de Patrick Roy justamente no quintal de ambos. Roy tornou-se santo em Montréal. Brodeur jamais usou a camisa tricolor como profissional, mas nasceu e cresceu nos subúrbios da cidade.

Tendo a presença de seu pai Dennis Brodeur, ex-jogador e renomado fotógrafo, no Bell Centre, Brodeur apresentou seu habitual acervo. Vazado apenas uma vez pelos Habs, foi sereno e seguro na vitória por 3-1 do New Jersey Devils. E também foi o primeiro e último homem da defesa. O terceiro linha azul.

Mesmo irritados por mais uma mostra de hóquei pouco inspirado de seu time, os torcedores locais aplaudiram de pé o feito do goleiro rival. Até mesmo Roy estava presente e reconheceu elegantemente o feito do arqueiro dos Devils.

Ídolo de infância de Brodeur, "St. Patrick" nem sempre teve um cartaz de destaque para Martin. Nos Jogos Olímpicos de 1998, Roy exigiu titularidade em todos os jogos, inclusive na disputa do bronze, relegando Brodeur ao banco durante os seis jogos que o Canadá disputou em Nagano.

Para quem acha que disputar o terceiro lugar não significaria muito para Brodeur, lembro que o bronze conquistado nos JO de 1954 é o momento mais especial de Dennis Brodeur como jogador de hóquei. Brodeur filho esperava atuar contra a Finlândia e repetir o feito de seu pai. Marc Crawford atendeu ao pedido de Roy. Finlandeses ficaram com o bronze e surgia uma inimizade velada entre os dois goleiros.

Três anos depois, Roy levava a melhor sobre Brodeur nas finais da Copa Stanley. Um ano depois, Brodeur seria campeão olímpico.

Quando lançou um livro em 2006, Brodeur assumiu que o único recorde que lhe interessava de verdade era o número de vitórias.

"Você joga hóquei para vencer e ele tem o maior número de vitórias. Essa é a marca que eu quero alcançar. Ser o mais vitorioso, o que mais você pode dizer? No momento é ele (Roy), e é merecido, mas espero um dia passá-lo."

Mesmo com o mal-estar em Nagano, foram raros os momentos em que Brodeur foi destaque por um destempero. Na verdade ele é uma raridade entre os maiores goleiros da história da liga. Terry Sawchuk, Roy, Glenn Hall, Dominik Hasek, Jacques Plante e Ken Dryden tiveram trajetórias brilhantes, mas passaram longe da tranquilidade exibida por Brodeur até hoje.

Terry Sawchuk, cujos 103 shutouts em breve serão superados por Brodeur (100 e contando), foi tão talentoso e vitorioso quanto atormentado. Roy, um vencedor inveterado, recebeu muitas vezes a alcunha de arrogante, e seu temperamento forte acabou significando um litígio doloroso com os Habs em 1995 e até mesmo a destruição de uma sala de vídeo após ser substituído e não ganhar o crédito por uma vitória.

Enquanto Brodeur conta piadas antes de jogos decisivos, Hall costumava vomitar de tão nervoso. Hasek se tornava uma figura difícil de se lidar após uma atuação ruim. Plante inventava contusões quando sua confiança não era boa o bastante, deixando a alta cúpula dos Canadiens irada. Já Ken Dryden vivia dividido entre hóquei e o mundo acadêmico, relegando o esporte ao segundo plano em certos momentos de sua curta carreira.

Podemos dizer, comparando os temperamentos, que Brodeur é uma anomalia entre esses mitos. Sua única superstição extravagante, por exemplo, é beber três quartos de uma lata de Sprite após o aquecimento de pré-jogo e mais duas entre os períodos — o que forçou uma membro da comissão técnica canadense a varrer Salt Lake City atrás do refrigerante poucos minutos antes um embate nas Olimpíadas de Inverno de 2002.

Brodeur é outra raridade também entre os goleiros franco-canadenses. O único entre os grandes daquela província que não adotou o estilo borboleta, aperfeiçoado por Roy, como característica. Martin é da escola stand-up, ou seja, prefere não cair de joelhos ao fazer uma defesa.

Apesar das diferenças de estilo e personalidade entre eles, o caráter vencedor é algo que une todas essas feras.

Na última vez em que sentou para negociar seu contrato com o gerente geral Lou Lamoriello, a primeira pergunta pertenceu a Martin, que quis saber do chefe quais os planos para a franquia. Brigaria pela Copa ou entraria em um processo de renovação? Lamoriello riu e perguntou se Brodeur estava brincando.

Donos de personalidades bem parecidas, chegaram ao acordo de seis anos, que vem pagando pouco mais de US$ 5 milhões a Brodeur, o que o deixa "apenas" na 10.ª posição entre os mais bem pagos de sua posição, significando mais abertura no teto do time. O famoso desconto caseiro.

A atual campanha dos Devils vem gerando boas expectativas em Newark. A equipe goza de relativa tranquilidade na liderança da Divisão do Atlântico. Parte dessa caminhada foi feita sem Brodeur, que ausentou-se após uma rara contusão. Scott Clemmensen, o substituto, foi muito bem no papel. Tão bem que acordou os analistas que tiram muito dos méritos de Brodeur e coloca na conta do estilo defensivo, adotado há muito tempo pela franquia.

Como já disse nessas mesmas incultas páginas, é evidente que atuar em um time que privilegia os aspectos defensivos é uma benção para qualquer goleiro, mas um olhar isento deve assumir que os Devils mais se beneficiaram de seu arqueiro do que o contrário. Embora nenhuma Copa tenha vindo após a aposentadoria de Scott Stevens e as saídas de Scott Niedermayer e Brian Rafalski, as vitórias ainda são uma constante para Martin Brodeur, mesmo tendo Paul Martin e Johnny Oduya como seus principais linhas azuis.

Agora, se ele é melhor que Roy, Hasek, Plante, Dryden ou Sawchuk?

Fico do lado do excelente colunista Eric Duhatschek. Regras diferentes — vitórias na prorrogação e nos pênaltis ajudaram na queda dos recordes de Sawchuk, por exemplo —, tamanhos dos equipamentos etc., tornam complicadíssima qualquer comparação.

A única coisa certa é que, dias depois de brilhar em Montréal, ele, frente a sua torcida em Newark, em uma rara noite de casa cheia no Prudential Center, se tornou o goleiro mais vencedor da história da NHL. O 3-2 final sobre os Blackhawks desatou uma festa inesquecível, com uma atmosfera parecida a de uma partida de Copa Stanley.

Ironicamente, nos planos iniciais de Brodeur, era pra ele estar do outro lado, tentando marcar gols. Começou assim, até um treinador perguntar se ele queria deixar de ser atacante e virar goleiro antes de um torneio. Aos sete anos de idade, tomou a decisão mais acertada de sua vida.

Eduardo Costa acha frescura e desperdício misturar whisky com guaraná ou qualquer outra coisa parecida.
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Martin Brodeur é parabenizado pelos companheiros após a 552.ª vitória de sua carreira.
(17/03/2009)
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Em rara noite de casa cheia, o recordista Brodeur acena aos fãs.
(17/03/2009)
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Brodeur: absoluto.
(17/03/2009)
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Página publicada em 18 de março de 2009.