Por: Marcelo Constantino

Há tempos que as brigas no hóquei vêm sofrendo ataques dos mais diversos lados. Quando os ataque são externos, que se danem. Quando são internos, aí ferem. Quando parte de jornalistas, mesmo de hóquei, que se danem. Mas quando parte dos próprios gerentes gerais, aí pode ser mortal. Afinal, são eles quem mandam na NHL, em última instância.

Na semana passada, durante o encontro anual dos gerentes gerais da NHL, os mesmos recomendaram duas mudanças para a próxima temporada, no que concerne a brigas:

1) Brigas que ocorram logo após uma disputa de disco (“face-off”) devem ser penalizadas com um adicional de 10 minutos de má-conduta (“misconduct”);

2) A penalidade para o instigador deve ser usada mais frequentemente quando um jogador parte para cima de outro em retaliação a um tranco legal.

A absurda escalada da patetice politicamente correta em todos os esportes (no futebol, por exemplo, falta pouco para um drible desconcertante ser considerado uma tentativa de humilhar o adversário e, portanto, ser supostamente merecedor de uma retaliação desleal) até justificaria o segundo ponto. Atualmente qualquer tranco mais forte parece ser motivo para uma retaliação no braço, via briga, quando na verdade isso poderia ser resolvido de forma bem mais interessante e cabida se a retaliação viesse na forma de outro tranco.

No caso do primeiro ponto eu não vejo sentido. A medida, por exemplo, buscaria coibir a clássica tentativa de revanche de Claude Lemieux para cima de Darren McCarty.

A rigor, os gerentes não estão, ainda, propondo exatamente o fim das brigas, mas é a velha história de se plantar a semente. No caso da NHL, é caso de plantar outra semente: a semente inicial foi plantada quando se estabeleceu a regra de penalizar o instigador da briga.

Acabar com as brigas na NHL eu vejo como o maior atentado já feito aos torcedores mais fiéis do esporte. Pior que isso, só mesmo proibir os trancos ou abolir a prorrogação em morte súbita nos playoffs. A busca por novos mercados, ou seja, por novos torcedores, não pode esbarrar no desrespeito aos torcedores antigos e fiéis da NHL. O torcedor de hóquei da NHL é diferente dos demais torcedores.

Torcedor de hóquei é aquele que decora os números de telefone, ou de qualquer outra coisa, com base na camisa de jogadores (se o seu telefone é, por exemplo, 9919-2568, o torcedor de hóquei decora mais ou menos assim: Gretzky-Yzerman-McCarty-Jagr). Ou quando decora que fulano mora na Av. Paulista n,º Lindros apto. MacInnis-Shanahan (leia-se 88/214).

Torcedor de hóquei é aquele que não respira e não quer conversa durante uma prorrogação de playoffs do seu time.

Torcedor de hóquei é aquele que não idolatra — ele até estranha — jogador bonitinho sem alguma cicatriz, por menor que seja, no rosto ou pelo menos um dente quebrado.

Torcedor de hóquei (ao menos um determinado tipo de torcedor) é aquele que pode esquecer até mesmo a própria data de nascimento, mas jamais esquece o dia 26 de março de 1997.

Torcedor de hóquei é sobretudo aquele que gosta de hóquei porque trata-se talvez do único esporte em que as brigas são toleradas, em que as brigas fazem parte do jogo.

Esse torcedor que se lembra de grandes jogos não apenas pelo espetáculo do jogo em si, ou pela virada sensacional, ou pela vitória épica, ou pelo aperto, ou mesmo pelo gol no fim ou na prorrogação. Esse torcedor se lembra de grandes jogos também pela quantidade de brigas que houve, ou pela quantidade de sangue no gelo, ou pela vingança promovida (no braço e no punho, é claro), pela pancadaria generalizada, ou melhor ainda, pelo conjunto de toda esta frase e da anterior. Torcedor de hóquei navega também por páginas dedicadas às brigas e aos brigões do esporte. E não são poucas as páginas dedicadas exclusivamente a isso. Torcedor de hóquei quer ver seu time vencendo no taco e no braço.

Anos atrás, quando ainda havia ESPN transmitindo hóquei no Brasil, a emissora fez uma pesquisa durante um jogo: a idéia era saber o que os torcedores achavam que deveria acontecer para tornar o hóquei da NHL mais atraente. Era uma época de declínio do número de gols (antes do locaute e das novas regras) e do auge dos sistemas defensivos amarrados.

O torcedor deveria votar online, no site da emissora. Lembro vagamente, mas havia várias opções, coisas como "mais gols", "retirar um jogador", "aumentar o tamanho da baliza", coisas assim. E havia "mais brigas". Qual opção ganhou? "Mais brigas". Mas foi acintosamente disparado, com mais de 60% dos votos. Eu mesmo me surpreendi, porque nunca fui exatamente um fã de brigas — sempre as via meio como coisas mecânicas (preferia as brigas generalizadas) —, mas entendia que fazia parte do espírito do jogo.

Ainda na mesma transmissão da ESPN, se minha memória não falha, um dos comentaristas mencionou que nunca tinha visto alguém despregar os olhos da TV (ou do gelo, se estivesse presente) durante uma briga.

As brigas sempre fizeram parte do esporte e sempre foram um atrativo a mais. O público gosta disso. Não apenas no hóquei, é verdade, mas o hóquei não é hipócrita e permite. Mas as brigas e os brigões já tiveram papel mais relevante na NHL.

Se antigamente todo time tinha ao menos um jogador no elenco apenas para servir como "segurança", "guarda-costas" dos astros da equipe (nem precisa ir longe, basta recordar de Dave Semenko e Wayne Gretzky no Edmonton Oilers dos anos 80), hoje em dia são poucos os que têm. E mais: geralmente hoje em dia exige-se que o "segurança" não se limite a isso, ele deve também contribuir defensiva ou ofensivamente. Veja, por exemplo, Georges Laraque ou Daniel Carcillo.

Como exemplo mais recente, o Detroit Red Wings venceu a Copa passada sem um único jogador no time fazendo esse papel de "segurança", e com um time que raramente se envolvia em brigas. Entretanto, no ano anterior, o Anaheim Ducks venceu a Copa com um time em grande parte baseado no aspecto físico e que não hesitava em brigar. Há espaço para todos.

O torcedor de hóquei realmente gosta de brigas (e é claro que isso é uma generalização). Há um grande contingente dos torcedores mais fiéis que há anos declamam seu desgosto pela instituição da penalidade para o instigador da briga — que inibiu bastante o número de brigas na liga. As novas regras (e elas foram e são extremamente saudáveis para o esporte) também: depois do locaute a quantidade de brigas despencou para o que talvez seja o menor nível na história recente da liga (apenas 919 brigas, quando nesta temporada já passavam de 1000 em fevereiro), mas esse número vem crescendo ano após ano. A rigor, a quantidade de brigas é algo crescente nos últimos anos.

Mas já vieram os falcões para semear novas medidas de contenção.

Marcelo Constantino guardará para sempre em sua memória a noite de sábado com “Somewhere back in time”.

AP
Imagens como esta podem estar com os dias contados — mesmo que isso signifique anos: os gerentes estao tramando novas formas de inibir as brigas na NHL.
Edição Atual | Edições anteriores | Sobre TheSlot.com.br | Comunidade no Orkut | Contato
© 2002-08 TheSlot.com.br. Todos os direitos reservados. Permitida reprodução do conteúdo escrito, desde que citados autor e fonte.
Página publicada em 18 de março de 2009.