Torcida revoltada, entrando em confronto com a polícia. Pedradas, gás lacrimogêneo, fogo, pancadaria... não, não é mais uma eliminação do Corinthians na Libertadores, troca de gentilezas após algum São Paulo X Palmeiras ou hooligans ingleses espalhando seu excesso de amor pela Europa. Tudo isso aconteceu em Vancouver, após a derrota dos Canucks no jogo 7 da decisão da Copa Stanley.
Tal qual em 1994, quando perderam o jogo 7, mas em Nova York, os torcedores da Colúmbia Britânica deram mais uma grande demonstração de falta de civilidade. Enquanto os presentes na Rogers Arena esperaram a entrega da Copa Stanley, saudaram Gary Bettman com uma vaia ensurdecedora e aplaudiram Tim Thomas, Zdeno Chara e os Bruins, dando lição de espírito esportivo, nas ruas da maior cidade da província carros e vidraças eram apedrejados e focos de incêndio
tinham de ser contidos por torcedores ensandecidos.
Sem exagero, parecia e muito o cenário que se instalou no Pacaembu após a derrota do Corinthians para o River Plate em 2005, sendo que nas ruas, e não na arena. E a razão é bem parecida: o Corinthians precisa da Libertadores. Os Canucks precisam da Copa Stanley.
Mais que isso, o Canadá precisa da Copa Stanley. A revolta de Vancouver, no entanto, não se repetiu em Calgary, 2004, ou Edmonton, 2006. Argumentar que o jogo 7 não aconteceu em nenhuma das duas cidades não serve, posto que em 1994 os torcedores depredaram Vancouver quando o jogo 7 aconteceu lá do outro lado, em Nova York. É o mero sentimento de inferioridade de uma torcida cujo time tem 41 anos e não conquistou a Copa Stanley. Edmonton Oilers, Montreal Canadiens, Calgary Flames, Toronto Maple Leafs... quase todos os rivais canadenses têm o troféu.
Mas e o
Ottawa Senators em 2007? Ottawa também não tem a Copa. Mas há sensíveis diferenças: Senators é uma franquia nova. E, como explicou um fã que se identificava apenas como vdB, em um fórum, à época, a torcida do Ottawa não é tão grande e insana quanto as demais. Principalmente pelo time estar localizado tão próximo de Toronto Maple Leafs e Montreal Canadiens.
Claro, há de se convir que os fãs revoltos não são maioria em Vancouver. Ou talvez sejam. Em 1994, mesmo após o caos urbano, os fãs receberam o time no BC Place Stadium com agradecimentos pela campanha heróica. E a campanha daquele time foi bem diferente. Os Canucks foram heróicos e arrastaram a série até o jogo 7 em 1994. Desta vez chegaram à Copa Stanley com muito sacrifício. Mesmo tendo time melhor e tendo conquistado o Troféu dos Presidentes, capengaram por algumas vezes nos playoffs. Por pouco não foram eliminados pelo Chicago e mesmo Nashville ou até San Jose (que perdeu a série por 4-1) chegaram a ameaçar em alguns momentos. No entanto, nada justifica vandalismo. Fãs civilizados em Toronto protestam com sacos na cara e a alcunha de "fãs decepcionados".
Mesmo assim, vamos ao número. Em 1994, 45 mil torcedores saudaram os Canucks no BC Place. Nas ruas, estima-se que o número de torcedores que participaram da revolta seja entre 55 e 75 mil. A marcha dos indignados superou a dos agradecidos, mesmo com uma bela campanha de vice-campeonato. Estima-se que, na época, os prejuízos tenham totalizado 1,1 milhão de dólares.
Curiosamente, antes mesmo dessas duas revoltas de Vancouver, outras revoltas haviam acontecido no Canadá, mas na província de Quebec. Uma delas envolveu fãs do Montreal Canadiens irritados após brigas e trancos maldosos em Maurice Richard, em jogo com os sempre quentes rivais Boston Bruins. E a outra teve motivo reverso: foi a comemoração pela conquista da Copa Stanley em 1993.
Procurei mas não tive acesso aos números oficiais da baderna de 2011. Mas não ouvi falar em registro de mortes.
As razões pelas quais torcedores de esportes organizam turbas para expressarem sua tristeza e decepção através da destruição não cabe ser analisada por TheSlot.com.br ou qualquer revista de esportes, mas sim por psicólogos, antropólogos, sociólogos e outros "ólogos". O que há de se convir é que é um espetáculo triste e bastante comum, em qualquer parte do mundo. Não podemos pegar o exemplo da briga que acabou em morte no Pacaembu, em uma mera final de torneio juvenil, em 1995 e dizer que é reflexo de um país sem educação, porque não é. Se fosse só isso não aconteceria no Canadá, Inglaterra, Espanha, Frabça, Suíça ou qualquer outro país de primeiro mundo. E acontece.
É durante esses tristes eventos que algumas imagens tornam-se ícones. Quem não tem arrepios até hoje de rever a imagem de um torcedor agredir um outro na cabeça com um pedaço de madeira em 1995, imagem que se tornou símbolo da violência no futebol brasileiro?
Claro, essas imagens não precisam ser necessariamente negativas ou relacionadas a violência. Em 1982, durante a Copa do Mundo, Maradona recebeu um passe em uma cobrança de falta e os jogadores belgas que formavam a barreira se perfilaram para encarar o craque argentino. A imagem de Maradona parado com os defensores belgas o encarando virou uma referência da personalidade do argentino. O autor da foto, Steve Powell, reconheceu que não tinha menor intenção de ter feito uma foto histórica, mas a resume com perfeição: "Capturei a aura de Maradona, a sensação de que era ele contra o mundo".
Da mesma forma, nem todo protesto se notabiliza pela violência. A foto da saudação do Black Power dos atletas negros americanos Tommie Smith e John Carlos, que, ao subir o pódio, colocaram uma luva negra na mão, ergueram o punho e abaixaram a cabeça, tornou-se uma das mais famosas relacionadas aos Jogos Olímpicos.
Saindo um pouco dos esportes, dentre as muitas imagens do festival Woodstock, em 1969, a foto de um casal hippie coberto com uma manta suja tornou-se a cara do festival. Em 1970 o fotógrafo americano John Filo capturou a adolescente Mary Ann Vecchio chorando ajoelhada ao lado do corpo de Jeffrey Miller, um hippie que havia sido baleado pela Guarda Nacional durante um protesto no campus da Universidade Estadual de Kent.
Uma das imagens icônicas é um beijo entre um soldado da marinha que havia acabado de retornar da Guerra no Pacífico e uma enfermeira, nas ruas de Manhattan. A foto foi publicada na revista Life e tornou-se um dos símbolos do fim da guerra e do retorno das tropas americanas. Um beijo.
Diferentemente de 1993 e 1994, que viu as outras revoltas canadenses, a era da informação e do escândalo é pródiga em espalhar informação, imagens e vídeos dos acontecimentos, desde os mais banais aos mais importantes, em qualquer lugar no mundo. Se um cidadão com um telefone celular ou câmera digital consegue registrar uma ex-namorada louca que grita no meio da rua deserta durante a madrugada, pedindo seu chip ao ex, o que se esperar de uma revolta popular?
Minutos após a partida, a ESPN, que transmitia o jogo ao Brasil, compartilhou imagens do começo da algazarra. As fotos de carros queimados e vidraças quebradas viajaram o mundo e até mesmo a Rede Globo deu grande destaque ao quebra-quebra. Mas uma foto acabou ganhando destaque muito maior. Não havia ninguém morto, ensanguentado ou pegando foto, mas sim um casal deitado no meio da rua trocando um beijo. Um beijo.
A foto passou três dias em destaque no Globo.com, que então havia dado destaque à violência nas ruas de Vancouver. As informações a respeito do casal também chegaram ao Brasil com a mesma facilidade que o romance entre qualquer jogador de futebol e sua respectiva namorada.
Não demorou para que o pai do rapaz envolvido se manifestasse todo orgulhoso no Facebook, dizendo que seu filho estaria fazendo amor e não guerra. Logo desobre-se que a canadense Alexandra Thomas foi atingida por um escudo de um policial da tropa de choque canadense, que corria para conter a desordem pública. Alexandra caiu no chão e seu namorado, Scott Jones, australiano, deitou para protegê-la. Um fotógrado (Getty Images), com o mesmo olho de quem tira foto de um hippie que levara um tiro num campus de universidade, faz uma foto que, instantaneamente, torna-se histórica e o "amor" entre os dois jovens acaba ganhando mais destaque que a violência urbana.
Que os responsáveis pela bagunça tenham sido devidamente presos e as vítimas, cujo prejuízo deve superar facilmente a casa dos milhões, sejam reembolsadas. Por que esse tipo de coisa não acontece mais na Inglaterra, mesmo com torcedores bêbados loucos? Porque lá o sistema jurídico e a segurança pública aprenderam a lidar e controlar a situação, da melhor forma possível: impedindo que ela aconteça.
Quanto ao Brasil... por mais que hoje tenhamos muito mais hóquei na TV fechada, com Jogos Olímpicos, Campeonatos Mundiais, NHL... a mídia aberta ainda espera razões negativas como brigas e revoltas públicas para dar algum destaque ao esporte. Scott e Alexandra acabaram nos prestando um favor: aqui o beijo apagou o fogo do vandalismo nas ruas de Vancouver.
Mais uma vez, pelo menos pra gente, o amor salvou o dia.
Thiago Leal é um cara romântico e teria arrumado um quarto ao invés de agarrar a moça daquele jeito no meio da rua.
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