Por mais que a torcida estivesse feliz com a
anunciada volta de Mario Lemieux, em dezembro de 2000, de alguma forma ela sabia que isto estava por vir. Em algum lugar, ainda que inconscientemente, ela sabia que aquela alegria tinha data de validade. Não se sabia era quanto. Seis meses? Dois anos? Cinco anos?
Ele garantia que seriam pelo menos cinco anos. E foram. Cinco anos quase exatos. Menos, claro, a ausência de todo o hóquei por uma temporada inteira e a ausência do próprio Lemieux quando novos problemas de saúde fizeram com que ele fosse forçado a ficar de fora por muito mais tempo do que gostaria.
Não que ele não estivesse acostumado. Ora, para quem já tinha lutado — e vencido — um câncer e um problema crônico nas costas, tudo o que ele teve de enfrentar nos últimos cinco anos pode ser comparado a como você ou eu lidamos com um resfriado. Só que havia um proble-ma com que ele não estava preparado para lidar.
A idade.
"Se eu pudesse jogar este esporte em um nível decente, eu voltaria a jogar", disse Lemieux, quase às lagrimas, na tarde de terça-feira. "Mas eu não tenho conseguido fazê-lo até agora neste ano, e não vejo como isso pode melhorar com o passar do tempo."
É claro que esse não foi o único motivo para a inesperada aposentado-ria. Um problema cardíaco contribuiu bastante para isso. Aliás, esse problema suscitava grande especulação sobre aposentadoria, mas, co-mo Lemieux vinha treinando com o time, que, por sua vez, anunciava que ele voltaria ao gelo ainda nesta temporada, só se cogitava uma eventual aposentadoria para abril ou junho.
Além da assinatura dos papéis de aposentadoria, a única formalidade que falta é a volta do seu número 66 ao lugar de honra no teto da Mellon Arena.
Na primeira vez em que se aposentou, em abril de 1997, quem não tinha algum laço emocional com Pittsburgh quase não ligou. Afinal, ele mesmo parecia não ligar muito para o jogo, para a liga que ele classifi-cou certa vez como "liga de garagem". No seu último jogo, não só fora de casa, mas na casa de um dos principais rivais, o Philadelphia Flyers, ele sequer se despediu. Mergulhou na aposentadoria.
Mas quando voltou, ele demonstrou que a paixão pelo esporte existia, sim. Ele até disse que sentiu falta do hóquei. Pode até ser que ele te-nha voltado com o intuito de valorizar a franquia com a sua presença, já que ele também era o dono dela, mas não se pode menosprezar de forma alguma o motivo dado por ele, de que seu filho Austin era novo demais para se lembrar de Lemieux jogando, por isso ele queria dar es-sa chance ao seu caçula. Austin, aos quase dez anos, pode se consi-derar um garoto de sorte.
A expressão "Lemieux II" jogando não era muito diferente da de um no-vato aos 18 anos tendo a sua primeira chance na NHL. E isso mostra como ele cresceu também como ser humano desde a sua primeira apo-sentadoria. No discurso de despedida, ele pediu aos seus agora ex-co-legas de time que aproveitem bem o tempo em que estão jogando, porque o tempo passa muito rápido e a carreira passa junto.
É, nem parece que faz só 22 anos que ele chegou a Pittsburgh com a cara cheia de espinhas e posando para uma famosa foto publicada na revista Sports Illustrated (ao lado). Nossa, 22 anos?
E, nesses 22 anos, ele conseguiu achar tempo para salvar a franquia. E nada menos que duas vezes! Na primeira, como novato de muito futu-ro, ajudou a lotar o estádio, tirando o time do vermelho mesmo sem conseguir alcançar os playoffs nas suas quatro primeiras temporadas. A segunda foi ainda mais espetacular: com o time em plena concordata e ameaçado de ser vendido e mudar de cidade, ele aproveitou o di-nheiro que lhe era devido e comprou o time. E manteve-o na cidade. Ah, e também achou tempo para faturar a Copa Stanley. E nada menos que duas vezes!
Talvez por tudo isso, é triste que Lemieux esteja se desligando quase que por completo da franquia. Além de não ser mais jogador do time, ele abdicou na semana passada de seu posto como CEO. Agora, é ape-nas um dos donos e membro do conselho deliberativo, mas o time está à venda, numa situação delicada financeiramente — desta vez, pelo menos, não está ameaçado de falência, mas de ter de se mudar. Após a provável venda do time, é possível que os novos donos ofereçam a Lemieux algum cargo, mas isso está longe de ser certeza.
Bons os tempos em que os Penguins eram o único clube do mundo cujo dono era também o artilheiro... Um charme que agora fica relegado apenas aos livros de história.
Lemieux aposenta-se como oitavo maior goleador da história da NHL, com 690 gols, décimo maior assistente, com 1.033 assistências, e séti-mo maior artilheiro, com 1.723 pontos. Mas esses números enganam. Eles não demonstram a excelência dele no gelo. Mesmo que ele jogasse todas as partidas desta temporada e da próxima, ele ainda estaria bem longe de figurar nos top 100 entre maior número de jogos na carreira. Apenas Wayne Gretzky tem uma média maior de pontos por jogo, e Gretzky não ficou de fora de tantos jogos no seu auge nem teve um elenco de apoio medíocre por tanto tempo.
É impossível saber como teria sido sua carreira se não tivesse sido obrigado a ficar de fora de tantos jogos. Por causa de doenças e con-tusões, ele ficou de fora de 398 jogos completos ao longo de sua car-reira, ou quase cinco temporadas inteiras. E esse número não contem-pla a sua primeira aposentadoria, de três temporadas e meia.
"Às vezes, eu penso sobre isso", confessa Lemieux. "Eu realmente perdi muito tempo de jogo. Mas acho que nunca vamos descobrir."
Não, nunca vamos saber.
Mas talvez nem interesse saber. Nenhum torcedor dos Penguins pode reclamar de como as coisas se desenrolaram nos últimos 22 anos. Nem Lemieux, na verdade. Afinal, graças a tudo que ele passou, ele deixou de ser apenas um ídolo do esporte. Ele se tornou também um exemplo de vida a ser seguido, um exemplo de perseverança que provavelmente ajudou até a salvar algumas vidas, dando esperança aos desengana-dos.
Isso vale (muito) mais que mil gols.
Alexandre Giesbrecht, publicitário, perdeu, junto com a cidade de Pittsburgh, um pouco da alegria pela conquista de uma vaga no Super Bowl pelos Steelers.
PELA SEGUNDA VEZ Quase chorando, Lemieux anuncia a sua segunda aposentadoria
(Steve Mellon/Pittsburgh Post-Gazette - 24/01/2006)
PINTURA Lemieux marca um dos gols mais bonitos da história das finais da Copa Stanley, depois de passar sozinho pela defesa do então Minnesota North Stars
(David E. Klutho/Sports Illustrated - 05/1991)
MICO? Posando para a revista Sports Illustrated antes de sua primeira temporada
(Lane Stewart/Sports Illustrated - 05/1991)