Muita gente só ouviu falar. E só ouviu falar que Mario Lemieux marcou cinco gols de cinco maneiras diferentes em uma partida de seu Pittsburgh Penguins contra o New Jersey Devils em 31 de dezembro de 1988 (em igualdade, vantagem e desvantagem numérica, de pênalti e num gol vazio). O que poucos sabem é que ele já tinha marcado o hat trick aos 11 minutos de jogo e que, com outras três assistências, aquela era sua segunda partida com oito pontos na temporada. Isso sem falar que naquele mesmo mês ele tinha participado, com um gol ou assistência, de 14 gols seguidos de seu time.
Quando daquela partida, ele ainda estava no ritmo para quebrar os recordes de pontos (215) e gols (92) em uma temporada, ambos propriedade de Wayne Gretzky desde alguns anos anos antes. Na temporada anterior, ele já tinha roubado de Gretzky os troféus Art Ross e Hart, algo que ninguém fazia desde 1980 (Art Ross) e 1979 (Hart). (No final da temporada de 1988-89, ele conquistaria o Art Ross, mas a 16 pontos e 7 gols do recorde, e ficaria sem o Hart.) Foi nessa época que começaram a surgir as comparações entre os dois mitos.
Mais de vinte anos se passaram desde aquela noite de réveillon, e ninguém tinha chegado perto do feito dos gols de todas as maneiras. Até o último sábado. Curiosamente, o reponsável pela quase-façanha foi justamente aquele que hoje ocupa o espaço que já foi um dia de Lemieux, como maior estrela da NHL e dos Penguins: Sidney Crosby. Apesar de tantas semelhanças com aquele que ainda é seu senhorio, as comparações envolvendo Crosby sempre foram muito mais com Alex Ovechkin do que com Lemieux. Mas aquela tarde de sábado trouxe muitas lembranças à plateia que lotou o Consol Energy Center.
Crosby marcou três vezes, de quatro maneiras diferentes, contra o Calgary Flames. No sgundo período, ele ampliou a vantagem para 2-0 com um gol em igualdade numérica. Na metade do terceiro período, ele fez 3-0 durante uma vantagem numérica. Até aí, nada de mais, nada que não se veja diariamente na NHL. Aos 19:23, de muito longe, ele fez 4-1, sem goleiro. Detalhe: os Flames estavam em vantagem numérica. Alguém então deve ter percebido que ficou faltando apenas um gol de pênalti para Crosby conseguir um feito ligeiramente inferior ao de Lemieux.
De maneira quase cruel, esse feito não veio por pouco, já que Crosby teve a chance de cobrar um pênalti no início do jogo, que acabou defendido por Miikka Kiprusoff. "Nem me fale sobre isso", lamentou, após o jogo. "Esse é um recorde que eu nunca imaginei que seria batido. Saber que cheguei tão perto dói, mas foi divertido e, obviamente, eu gostaria de ter colocado aquele disco para dentro." Kiprusoff, aliás, apesar dos três gols sofridos, só não foi o nome do jogo por causa de Crosby. Só no primeiro período, ele fez impressionantes 24 defesas. E ele foi um dos primeiros a elogiar a raça do atacante adversário. "Ele [teve de brigar por cada gol]", disse. "Ele ficava em volta do gol. Ele não ficava inventando." O atacante Jarome Iginla também não poupou elogios àquele que, com assistência sua, marcara o gol da medalha de ouro nas últimas Olimpíadas de Inverno, mas agora estava do outro lado: "Ele mostrou por que é o melhor no esporte hoje."
O gol em rede vazia ainda serviu para destacar uma estatística curiosa: foi apenas o quinto de sua carreira. Para se ter uma ideia, ele tem 201 gols na carreira. Ora, ele tem mais hat tricks no currículo do que gols em rede vazia. Apesar de a marca de Lemieux não ter sido alcançada, as estatísticas de Crosby naquela partida estiveram longe de ser decepcionantes. Além de conseguir o sexto hat trick de sua carreira, ele assumiu a artilharia da NHL, um ponto à frente de Steven Stamkos, e alcançou sua 12.ª partida seguida com ao menos um ponto, a mais longa da liga nesta temporada. Ao longo desses jogos, ele acumulou 12 gols e 13 assistências — e os Penguins ganharam pontos em dez desses jogos, vencendo nove deles e recuperando-se de um mau início. Mais uma curiosidade? Este foi o terceiro ano seguido em que ele marcou um hat trick no sábado imediatamente seguinte ao Dia de Ação de Graças.
O Troféu Rocket Richard da temporada passada, dividido com Stamkos, mostrou que Crosby soube se reinventar para chutar mais e com mais precisão. Atualmente ele está na vica-liderança entre os goleadores, três gols atrás do mesmo Stamkos, cuja produtividade levou alguns a falar de maneira precoce em 50 gols em 50 jogos, algo que nenhum dos dois vai conseguir, ao menos não nesta temporada. A essa reinvenção, soma-se nesta temporada a maior produtividade em faceoffs. Ele atualmente ocupa a 21.ª posição na liga no quesito, com 54,8%, aí incluídos jogadores que disputam faceoffs apenas ocasionalmente (o site da liga não faz essa separação nem fornece o número de faceoffs disputados). Para efeito de comparação, em seu primeiro ano na liga ele teve um aproveitamento de 45,5%. Em 2010-11 ele até bateu o recorde de faceoffs vencidos em um jogo dos Penguins, com 25 dos 32 que disputou contra os Rangers, no último dia 15. Um aproveitamento de 78%.
Crosby dificilmente igualará as estatísticas de Lemieux, que, apesar de inúmeros problemas de saúde que o impediram de disputar sequer uma temporada completa, pegou uma liga muito mais ofensiva. Mas já desde bem cedo mostra que é um jogador mais trabalhado em todos os aspectos no gelo e tenta sempre melhorar as deficiências de seu jogo. Lemieux, por outro lado, nunca foi conhecido por dar o melhor de si em treinamentos e, especialmente, na hora de manter-se em forma. Qualquer comparação entre os dois será sempre meramente subjetiva. Mas será feita. Sempre. Ainda mais em tardes como a de sábado passado.