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Por: Thiago Leal

Imagine você, torcedor do Palmeiras, ter que vestir uma camisa do Corinthians. Ou um torcedor do Cruzeiro ter que vestir uma camisa do Atlético, um torcedor do Grêmio ter que vestir uma camisa do Internacional. Culturalmente, no Brasil, isso chega a ser quase um crime. E não chega a ser diferente em outras partes do mundo, mesmo que não estejamos falando de futebol.

Embora hóquei no gelo hoje seja negócios milionários, ainda há um espaço onde o clube representa mais que a franquia. É a mente do torcedor folclórico, aquele que acompanha o esporte desde criança porque foi culturalmente coagido a acompanhá-lo e a torcer por um time próximo de sua casa. Essa visão pode ser encontrada, principalmente, em torcedores canadenses, onde o hóquei no gelo é uma cultura, assim como o futebol é para o Brasil.

Duas finais de Copa Stanley recentes revelam esta faceta: os torcedores do Edmonton Oilers que, impedidos de entrar no Rexall Place, começaram a cantar do lado de fora; e os torcedores do Ottawa Senators que pararam as ruas da capital canadense em comemoração à vitória sobre os Ducks no jogo 3 da Copa Stanley. Para a infelicidade das duas torcidas, seus times foram derrotados.

Mas se em pleno século XXI ainda temos essa demonstração de fanatismo, o que acontecia na metade do século passado, quando hóquei era apenas clube e nenhuma franquia?

A camisa do Montreal Canadiens de Roch Carrier, um pequeno torcedor da cidade de Sainte-Justine, no Quebec, estava gasta, velha e pequena para seu corpo. Todas as crianças da vizinhança tinham suas camisas dos Canadiens com o número #9 às costas. Todos queriam ser Maurice Richard. Então a mãe de Carrier resolveu fazer o pedido de uma nova à Eaton's, fornecedora de material exportivo à época. Como os formulários postais de vendas da Eaton's eram apenas em inglês, a mãe do garoto, que não dominava o idioma falado fora dos limites de Montreal, enviou um formulário manuscrito. Por engano, a Eaton's envia uma camisa do Toronto Maple Leafs. Sem instruções suficientes para saber que poderia exigir reembolso, a mãe não permitiu que o seu filho devolvesse a camisa, pois isso poderia ofender Timothy Eaton, dono da empresa, um apaixonado torcedor dos Leafs. O garoto então é obrigado a vestir aquela camisa azul e ser humilhado pelos colegas de time. Como toda criança canadense, Carrier jogava hóquei em times infantis de bairro. E todos seus amigos no time estavam com suas camisas dos Canadiens. Vestindo aquela camisa do time rival, Carrier não teve permissão do treinador para entrar em campo, fazendo-lhe quebrar o taco no gelo e ir à igreja orar pedindo que Deus enviasse traças para devorar aquela jaqueta azul.

Carrier cresceu, aparentemente sem traumas, estudou em instituições de renome, como o Collège St. Louis em New Brunswick, a Universidade de Montreal e Universidade de Paris, e tornou-se um importante escritor, um dos mais conhecidos em todo o Canadá. Em 1979 ele lançou uma novela chamada A Jaqueta de Hóquei (Le Chandail de Hockey em francês, The Hockey Sweater em inglês) contando o curioso caso. Talvez Carrier não tivesse noção do quão importante sua obra se tornaria, especialmente para a província de Quebec.

A criança fanática pelos Canadiens que foi, a contragosto, forçada a utilizar a camisa do maior rival passou a representar boa parte dos pequenos jovens provincianos de cidadelas e vilas no interior do Quebec que sonhavam em virar jogador de hóquei. Sim, o conto tornou-se parte do culto popular aos Canadiens e a representar a voz da juventude francofônica no Canadá, virando, mais tarde, peça de teatro e filme de curta-metragem. A obra passou a ser lidas por pais aos seus filhos antes de dormir.

Le Chandail de Hockey, automaticamente, passou a representar o quão forte é a cultura canadense para com o hóquei no gelo, a ponto de um adulto não pôr uma criança para jogar simplesmente porque ela vestia uma camisa de um time rival. Troque o esporte por futebol e o país por Brasil e podemos adaptar o conto à nossa cultura. Que torcedor do Flamengo, quando criança, iria ficar feliz em vestir uma camisa do Fluminense? E se você mudar para beisebol e para os Estados Unidos, verá um torcedor do Boston Red Sox que se sentiu mal por vestir uma camisa do New York Yankees.

No Canadá, em particular, isso chega a ter um drama maior, pois é uma rivalidade que vai além do esporte e se estende por traços culturais, coloniais e linguísticos.

O conto ainda serviu como uma nostalgia aos tempos em que as franquias de hóquei no gelo eram clubes e tinham uma proximidade muito maior com seus torcedores. E quando as crianças ainda podiam sonhar em ser Maurice Richard, antes que os recrutamentos da NHL se tornassem algo absurdamente badalado e adolescentes começassem a entrar na liga com status de lenda. Era um tempo sem recrutamentos onde o jogador era contratado pelo time através de olheiros, sempre como agentes livres. Nessa época era possível você torcer pelos Canadiens e sonhar em jogar pelos Canadiens, já que seu destino não seria definido por uma bolinha que elencaria a ordem de escolha dos times. E era bem mais comum que jogadores de determinada região representassem os times do respectivo lugar, como acontece com o futebol até hoje em dia.

Mas para muitos o mais importante eram os valores dentro de uma inocente história infantil: a tensão cultural entre as colônias francesa e inglesa no Canadá. Sem falar que o problema linguístico é tratado no livro através da escrita, uma carta, o que alguns autores chegaram a interpretar como uma crítica sutil ao preconceito com que as obras literárias franco-canadenses eram tratadas no restante do país.

Carrier venceu, com seu conto tornando-se tão popular a ponto da sua obra Le Chandail de Hockey ser estampada nas costas da nota de 5 dólares canadenses. Gol dos Canadiens!

Thiago Leal tem uma camisa do Montreal Canadiens. E uma do Toronto Maple Leafs também.
Reprodução
Capa da edição franco-canadense do livro Le Chandail de Hockey.

Library and Archives Canada
A criança Roch Carrier, torcedor do Montreal Canadiens, vestindo a camisa do Toronto Maple Leafs, no evento que deu origem ao livro.

Arquivo TheSlot.com.br
O renomado autor Roch Carrier, enfim com uma camisa dos Canadiens.

Reprodução
A nota de cinco dólares canadenses, com imagens que remetem ao livro Le Chandail de Hockey.

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Página publicada em 10 de janeiro de 2010.