Por: Igor Veiga

Em 1993, as coisas eram bem diferentes. Enquanto hoje em dia a moda são os MP3, MP4, "MP50" da vida, naquela época estávamos ainda há pouco tempo acostumados com o CD e muitos ainda compravam fitas K7 nas lojas! Queria ver um filme? Eram poucas as opções: assistir no cinema, esperar a distribuidora liberar a fita VHS, ou então aguardar até que um canal de televisão resolvesse passar num horário aleatório qualquer (e aí programar o vídeo cassete...). Internet? Nem pensar! Comprar uma linha de telefone fixo custava os olhos da cara e telefone celular ainda seria uma novidade (e para poucos!) alguns anos depois (e isso na versão "tijolão"). Para fechar esse cenário, que tal conviver com uma taxa de inflação em torno dos 50% ao mês!? Parece loucura hoje em dia, mas os brasileiros só saberiam o significado da expressão "estabilidade de preços" no ano seguinte, com a criação do Plano Real.

Assim era o mundo quando o Montreal Canadiens ganhou o seu 24º e último título da Copa Stanley. Depois de dominar a liga durante as décadas anteriores (com exceção dos anos 1980, quando também só ganhou um título), a franquia canandense amargava um certo papel de coadjuvante na NHL, deixando de ser o time imbatível e temido de outros tempos. Na década de 1980, os Canadiens disputaram somente duas vezes o título, ganhando em 1986 (naquela que seria a temporada em que goleiro Patrick Roy apareceu para o mundo) e sendo derrotados três anos depois pelo Calgary Flames. Depois disso, três temporadas se passaram e nada dos Habs honrarem o seu passado vitorioso.

Mas eis que chegou a temporada 1992-1993, que já começava de forma especial. Aquela temporada marcaria os 100 anos em que a Copa Stanley foi entregue a uma equipe campeã de hóquei pela primeira vez. Coincidências à parte, o fato é que o 100º campeão da Copa seria a equipe que hoje faz 100 anos...

Antes do início do campeonato, todos davam o Pittsburgh Penguins como favorito para levar a taça. O time de Mario Lemieux e Jaromir Jagr dominou a liga nos dois anos anteriores, e brigava pelo tricampeonato. Enquanto isso, os Canadiens tentavam ao máximo se reforçar. Repetir o desempenho das três temporadas anteriores — em que caíram nas finais de divisão sempre diante dos Bruins — estava totalmente fora dos planos da diretoria, do elenco e da torcida. Para mudar de vez esse cenário, chegaram ao clube o técnico Jacques Demers e jogadores como o central Vincent Damphousse e o ala-esquerdo Brian Bellows.

Começando de forma fulminante a temporada regular, os Habs estavam na ponta da tabela da Divisão Adams no final do ano de 1992. No início do ano seguinte, a equipe conseguiu manter a regularidade, porém, a partir de março, começou a perder o ritmo, terminando a temporada regular na terceira posição da divisão com 102 pontos (48-30-6), ficando atrás de Boston Bruins (109 pontos) e Quebec Nordiques (104 pontos). Roy teve números discretos durante a temporada regular, com 31-25-5, 89,4% de defesas e 3,20 de média de gols sofridos. Na frente, destaque para Damphousse, com 97 pontos, Kirk Muller, com 94, o artilheiro Brian Bellows, com 88 (40 gols) e Stephan Lebeau, com 80 pontos.

Começava então a pós-temporada. Logo na primeira rodada, um dos grandes rivais, com quem protagonizava a Batalha de Quebec, o Quebec Nordiques. Com uma fraca atuação de Roy nas duas primeiras partidas, os Nordiques abriram 2-0 na série. O jogo 1, inclusive, marcaria a única derrota dos Habs no tempo extra daqueles playoffs. Mas Demers confiava em Roy e o escalou como titular na partida seguinte. E o goleiro não decepcionou, ajudando o tricolor a ganhar o jogo 3 na prorrogação, naquela que seria a primeira de uma sequência de 10 vitórias seguidas no tempo extra dos playoffs que entraria para sempre na história da NHL. Os Habs também ganhariam as três partidas seguintes, fechando a série em 4-2 (a última entre as duas equipes antes da mudança do time adversário para Colorado).

Nas finais da Divisão Adams, os Canadiens enfrentariam o Buffalo Sabres, que surpreendentemente haviam varrido os Bruins na série anterior. Seria a primeira vez em que Roy enfrentaria o grande goleiro Grant Fuhr numa série de playoffs. O placar final da série (4-0 para os Canadiens) não reflete o que de fato aconteceu. Foram quatro jogaços, todos terminando em 4-3 para o time canadense, sendo as três últimas partidas decididas na prorrogação (mais uma vez...).

A caminho das finais da Conferência Wales, os Canadiens vinham com uma sequência de oito vitórias seguidas, cinco delas na prorrogação.O adversário seria a supresa do campeonato, o NY Islanders, que havia acabado de eliminar os favoritos Penguins em sete partidas. Nos três primeiros jogos da série só deu Habs. A equipe chegou à incrível marca de 11 vitórias seguidas nos playoffs, sete delas na prorrogação! A sequência só teve fim na partida seguinte, em que os Isles venceram por 4-1. Mas aquilo não abalou o time canadense, que ganhou a quinta partida e fechou a série em 4-1. Depois de quatro anos de jejum e pela 34ª vez em sua história, os Canadiens estavam de volta às finais da Copa Stanley.

Aquela que seria a última série final de Copa Stanley disputada no Fórum de Montreal — que deixaria de ser a casa dos Canadiens três anos depois — também marcaria a última vez em que uma das maiores lendas do hóquei, Wayne Gretzky, disputaria as finais. Disputando pela primeira vez o título em sua história, o LA Kings havia deixado pelo caminho o Calgary Flames (4–2), o Vancouver Canucks (4–2) e o Toronto Maple Leafs (4–3). A equipe da Califórnia tinha um ataque poderoso, comandado pela estrela Luc Robitaille, que além de Gretzky, contava com jogadores como Tomas Sandstrom e Jari Kurri. O ponto fraco ficava nas redes, já que os goleiros que não passavam muita confiança para a torcida.

A primeira partida foi disputada no Fórum, em 1º de junho. Com um show de Robitaille, os Kings calaram a torcida dos Habs, vencendo por humilhantes 4-1. O jogo 2 seria aquele que muitos acreditam ter sido o mais importante da série. Ao fim do terceiro período, os Kings venciam pelo placar de 2-1. Se perdessem aquela partida, os Habs sabiam que ficariam muito distantes da taça. A campanha mágica da equipe até ali, com vitórias heróicas na prorrogação parecia que ter sido em vão. Foi aí que apareceu o golpe de mestre do técnico Jacques Demers. Numa verdadeira catimbada, Demers acusou aos árbitros que o taco do zagueiro Marty McSorley, dos Kings, estava irregular. Dúvida confirmada, penalidade marcada, e lá iam os Canadiens com 6 contra 4 desesperadamente em busca do gol de empate, que veio através de um chute certeiro do defensor Éric Desjardins. O mesmo Desjardins— que já havia anotado o único gols dos Habs no tempo regulamentar — voltaria a marcar o gol da vitória na prorrogação (a oitava seguida). Ele entrou para a história como o primeiro defensor a fazer um hat-trick num jogo de finais da Copa. Placar final: 3-2 Canadiens. Uma partida memorável na história do Fórum e que fez todos acreditarem que aquele time, imbatível nos tempos extras, tinha algo de especial.

A série se mudou então para Los Angeles, e de lá sairia a confirmação de que nenhum time naquele ano conseguiria tirar o título do Montreal. Os jogos 3 e 4 tiveram circunstâncias muito parecidas. Na terceira partida, os Habs abriram uma vantagem de 3-0 no segundo período, que os Kings conseguiram buscar ainda no mesmo período! Partida empatada, mais uma prorrogação e mais uma vitória dos Canadiens. O ala-esquerdo John LeClair marcou gol da vitória (4-3), a nona seguida do seu time no tempo extra naqueles playoffs. Na partida seguinte, novamente os Habs saíram na frente, fazendo 2-0, porém mais uma vez os Kings reagiram e levaram o jogo para a prorrogação. John LeClair seria novamente o jogador decisivo, marcando o gol da vitória dos Habs por 3-2 — o último jogador a marcar dois gols seguidos em prorrogações de playoffs tinha sido ninguém mais, ninguém menos que "The Rocket" —, a décima e última daquela sequência histórica de prorrogações de pós-temporada.

Fórum de Montreal, noite de quinta-feira de 9 de junho de 1993. Com a série a seu favor em 3-1, os Habs teriam a oportunidade de dar fim ao jejum de cinco anos sem levantar a taça e fechar com chave de ouro aquela campanha incrível nos playoffs. Numa atmosfera magnífica para uma decisão, os dois times protagonizaram um primeiro período muito movimentado. Roy foi perfeito, colocando-se no lugar certo, na hora certa, e passando a segurança necessária ao resto do time. A pouco mais de três minutos do fim, saiu o primeiro gol do time casa. La Clair mostrou-se novamente decisivo, ao roubar o disco do defensor dos Kings, deixando que Desjardins tivesse a tranquilidade para passar com perfeição para o wrist shot do central Paul DiPietro. Habs 1-0.

No segundo período, logo aos 2min40s, os Kings empataram com um gol chorado do protagonista da polêmica do jogo 2, Marty McSorley. Só que os visitantes nem tiveram tempo de comemorar, pois, aos 3min51s, Kirk Muller deu um "totózinho" no disco para colocar os Habs novamente em vantagem (2-1). Aos 11min31s, mais um gol do time da casa. Aproveitando a vantagem numérica no gelo, La Clair arrancou pela esquerda e lançou Mike Keane, que, com um passe de mestre, deixou Stéphan Lebeau em perfeitas condições para colocar o disco sob o corpo do goleiro Kelly Hrudey, aumentando o placar em 3-1.

O terceiro e último período daquelas finais não teve a emoção dos dois primeiros. Ambas as equipes encontravam muitas dificuldades em criar jogadas de perigo, porém, quando o faziam, exigiam um bom trabalho dos goleiros. Numa dessas situações, o ala Gilbert Dionne deu início a um rápido contra-ataque para os Canadiens, carregando o disco até próximo do gol adversário, onde, num lance magistral, enganou o defensor dos Kings e passou na medida para que DiPietro marcasse seu segundo gol na partida, aos 12min06s, aumentando o marcador em 4-1 para o tricolor canadense. Para os Kings, aquele gol significava o fim do sonho do título. Não havia nada a se fazer, a não ser esperar a sirene do Fórum tocar, anunciando o fim do período. E ela ecoou, para explosão da torcida e dos jogadores dos Canadiens. Wayne Gretzky, artilheiro dos playoffs, deu o seu taco de presente para o técnico Jacques Demers assim que a partida terminou. Os Habs eram campeões da Copa Stanley pela 24ª vez em sua história, um recorde que nenhuma outra equipe até hoje alcançou.

Mas uma boa parte daquele título se deve ao desempenho de um jogador em especial: o goleiro Patrick Roy. Com dezesseis vitórias e apenas quatro derrotas nas quatro séries daqueles playoffs, sua presença no gelo era sinônimo de segurança para o resto do time. Com média de gols sofridos de apenas 2,13 e 92,9% de defesas naquela pós-temporada, Roy não apenas se transformou na maior estrela daquele time, como de toda a NHL. Sua raça, sua determinação, sua coragem, seu esforço e, principalmente, sua auto-confiança lhe valeram, pela segunda vez em sua carreira, não só a Copa, mas também o Troféu Conn Smythe, como o jogador mais valioso dos playoffs. Era a quinta vez na história da liga que um jogador recebia o prêmio em duas ocasiões diferentes — ele havia vencido pela primeira vez em 1986. Um verdadeiro campeão de uma franquia 24 vezes campeã.

Um título que, passados 16 anos, permanece longe de Montreal... e também do Canadá.

Campeões da Copa Stanley de 1993:

Atacantes: Benoit Brunet, Brian Bellows, Brian Skrudland (A), Denis Savard (A), Ed Ronan, Gary Leeman, Gilbert Dionne, Guy Carbonneau (C), Jesse Bélanger, John LeClair, Kirk Muller (A), Mario Roberge, Mike Keane, Oleg Petrov, Patric Kjellberg, Patrik Carnback, Paul Di Pietro, Stéphan Lebeau, Todd Ewen, Turner Stevenson e Vincent Damphousse.

Defensores: Donald Dufresne, Eric Charron, Eric Desjardins, Jean-Jacques Daigneault, Kevin Haller, Lyle Odelein, Mathieu Schneider, Patrice Brisebois, Rob Ramage e Sean Hill.

Goleiros: Patrick Roy, Frédéric Chabot e André Racicot.

Técnico: Jacques Demers
Gerente Geral: Serge Savard

Igor Veiga participa ativamente do Fórum Center Ice e grava, a cada semana, a Rádio Center Ice, podcast sobre hóquei no gelo comandado por Juan Valencia.
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Os Canadiens fazem a festa após o jogo 5 das finais. Aquela campanha ficaria marcada pelas 10 vitórias seguidas na prorrogação durante os playoffs.

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Patrick Roy, a principal figura do título. Poucas vezes a NHL tinha visto um goleiro tão decisivo como ele.

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O capitão Guy Carbonneau com a Copa. Sua raça e liderança eram exemplos para os seus companheiros.

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Roy vs. Gretzky: Duelo de gigantes nas finais da Copa Stanley de 1993.

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Festa de Ed Ronan (31) e Benoit Brunet (22). Mais um gol dos Habs no Fórum diante do LA Kings.

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Éric Desjardins. Seu hat-trick espírita no jogo 2 das finais foi um ponto-chave no caminho do título.

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O central Vincent Damphousse. Maior pontuador da campanha habitant.

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Mais um gol decisivo de John LeClair (17) contra os Kings na prorrogação. O ala-esquerdo foi um dos destaques do ataque canadien naquelas finais.

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Roy recebe o Conn Smythe das mãos do comissário Gary Bettman após o jogo 5. Pela segunda vez em sua carreira, o jogador mais valioso dos playoffs.

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Página publicada em 10 de janeiro de 2010.