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9 de janeiro de 2004
Os abutres venceram

Por Marcelo Constantino

Antes de toda temporada a NHL promete que vai combater a obstrução no jogo. O resultado geralmente é o mesmo: balela. Na temporada passada a liga foi um pouco mais incisiva e anunciou que aquele seria um ano realmente de guerra total contra a obstrução. Fosse a obstrução simples, fosse puxar ou enganchar o adversário ou segurar seu taco, a NHL iria coibir sem fazer vista grossa. Essa era a promessa. "Obstruction crackdown" era o nome da campanha dessa guerra contra o que eu costumo chamar de agarra-agarra. E começou realmente bem, para espanto geral. Lembro que escrevi um ano atrás uma matéria em defesa da ação da liga, que ainda hoje parece atual.

O número de penalidades marcadas naturalmente aumentou, o fluxo do jogo melhorou e, ainda assim, o banco de penalidades não ficou abarrotado. Esperava-se que, com o andar da temporada, a quantidade de penalidades marcadas fosse cair, com os jogadores se ajustando ao "novo sistema".

Por outro lado, aguerra contra a obstrução fez crescer também o número de cavadores de faltas, os "mergulhadores". Efeito nocivo de uma boa ação, os cavadores foram muito bem usados pelos que queriam ver o fim da guerra contra o agarra-agarra: de efeito colateral, eles passaram a ser apontados como principal resultado da ação da liga. E ainda havia outra forma de ataque por parte dos abutres: a falta de critério das marcações.

É evidente que a questão da rigidez da regra contra a obstrução divide jogadores, dirigentes e donos de time. Deixar rolar o agarra-agarra é extremamente benéfico para os times mais fracos e para os jogadores menos habilidosos.

A reação dessa turma foi grande: "Há um excesso de penalidades marcadas", "está diminuindo o fluxo do jogo", "não se joga mais no 5-contra-5", "faltam critérios", "não marcam penalidades para os cavadores", e por aí vai. Partiu de jogadores, técnicos, gerentes, gente de todas posições. Muitos dos bem intencionados que teceram algumas dessas críticas pontuais acabaram sendo usados pelos abutres, e, no fim das contas, tudo parecia uma grande reação à empreitada da NHL pela dinamização do jogo.

Os dois problemas -- o recrudescimento do cavadores e a falta de padronização dos critérios de marcação das penalidades -- de fato ocorreram, mas era algo simples de se resolver: bastaria aplicar as regras. Da mesma forma que a obstrução deve ser penalizada, os cavadores também devem receber seus dois minutos de banquinho por conduta anti-desportiva. Padronizar as marcações de penalidades? Está no livro das regras, é simples.

Só que os árbitros já deviam estar tão acostumados com o agarra-agarra que mal se lembravam do que realmente é ou não permitido fazer. Ganchos, puxões, empurrões, seguradas de taco, tudo isso cresceu intensamente nos últimos anos na liga diante da vista grossa dos árbitros. Quando foram chamados no melhor estilo "agora chega de tolerância", eles se atrapalharam.

A liga ainda tentou uma pequena cartada, divulgando semanalmente uma lista com os maiores de cavadores de penalidades, mas não perece ter produzido os resultados esperados.

No fim das contas os abutres venceram. Depois do Jogo das Estrelas a guerra contra a obstrução foi perdendo cada vez mais terreno. Durou mais do que se imaginava, mas já na reta final rumo aos playoffs já havia morrido qualquer ação concreta contra o agarra-agarra. Sistemas defensivos grudentos voltaram a prevalecer absolutamente sobre qualquer tentativa de se jogar um hóquei mais aberto e ofensivo (e os Devils foram campeões!).

Mike Modano acha que alguns times acreditaram na NHL quando ela disse que agiria fortemente contra a obstrução e montaram equipes mais velozes e ágeis, sem grande preocupação com tamanho e força física: "Eu acho que vários times fizeram isso. Construíram um time com jogadores rápidos e ágeis e não tão grandes assim. Mas veio o efeito reverso, a obstrução voltou e esses jogadores não são mais um grande fator de diferença". Difícil crer que alguém tivesse acreditado na ducentésima promessa da NHL em combater o agarra-agarra, mas é significativo como uma palavra não cumprida pode arrasar uma estratégia gerencial.

Evolução -- Sabe aquelas máquinas de pinball, em que você pode bater e balançar um pouco para que a bolinha vá para onde você quer, mas desde que seja de leve, porque se exagerar dá tilt? Então, é a mesma coisa com o agarra-agarra na NHL. Você pode puxar o adversário, segurar o taco dele, enganchar e até dar umas porradinhas, enfim, pode fazer o escarcéu, mas desde que seja apenas por um tempinho, sem dar muito na pinta. Se exagerar, aí sim corre o risco do árbitro marcar alguma penalidade. Só assim.

Eu confesso não ser conhecedor dos árbitros na liga, exceto por Kerry Fraser, mas, até onde eu vejo, todos os árbitros são assim. Da mesma forma que a obstrução é praticada por TODOS os jogadores, de TODOS os times. Pudera, se é algo que facilita a ação defensiva e que não está sendo punido como deveria, porque não?

Qualquer técnico que ousa abrir seu time para focar as ações essencialmente no ataque volta atrás logo que vê seus atacantes sendo seguidamente agarrados por defensores (e tacos) adversários sem que qualquer penalidade seja marcada. Exemplo disso é Tony Granato, do Colorado Avalanche, que começou a temporada colocando seu time para jogar aberto e para frente e decidiu reverter depois de perceber que não pode mais jogar dessa forma hoje em dia. Resultado da nova estratégia de pensar primeiro na defesa e depois no ataque: os Avs melhoraram (mesmo sem Peter Forsberg e Paul Kariya).

Chega de meter o taco no corpo do adversário para segurá-lo ou para pegar carona na corrida dele, chega de puxar camisa ou literalmente agarrar alguém para impedir seu avanço. Jogar bem defensivamente e obstruir o adversário não são necessariamente sinônimos, apenas é muito mais fácil defender utilizando-se desses expedientes irritantes e ilegais.

De nada adianta fazer qualquer campanha contra o agarra-agarra se não houver punição. A melhor de todas as medidas para trazer de volta a dinâmica do jogo e abrir a zona neutra é simplesmente aplicar as regras. A solução é simples assim: apliquem as regras conforme elas estão descritas no livro de regras da NHL.

Marcelo Constantino não acredita, infelizmente, numa real ação da NHL contra o agarra-agarra: há mais times beneficiados do que prejudicados pela obstrução no hóquei.
 
  O USO DO TACO Um claro exemplo de infração considerada normal hoje em dia: o uso do taco para impedir a ação do adversário (Eric Miller/Reuters - 11/12/2003)
   
 
  VISTA GROSSA De tão acostumados a deixar rolar, os árbitros deixam de marcar até mesmo penalidades escandalosas como este tripping de Chris Phillips sobre Alexei Kovalev (Jim Young/Reuters - 20/12/2003)

 

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"A NHL EM CRISE"
Parte 1: O que há com a NHL?
Parte 2: Novas regras para atrair público

 

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Página publicada em 7 de janeiro de 2004.