Edição n.º 63 | Editorial | Colunas | Rankings da Slot | Notas | Fotos
 
26 de dezembro de 2003
O que há com a NHL?

Por Marcelo Constantino

Há algo de errado com a NHL e não é apenas o iminente fim da vigência do acordo com a NHLPA (o famoso CBA, "Collective Bargaining Agreement", ou Acordo Coletivo de Trabalho) e a possível paralisação subseqüente. Nesta temporada possivelmente teremos um número assombroso de shutouts, assim como a menor média de gols em muitos anos. Média esta que já está em queda há tempos. A audiência na TV também tem caído e recentemente a ESPN diminuiu a quantidade de partidas transmitidas para os EUA. Já tivemos três partidas terminadas em 0-0 nesta temporada e a média dos jogos está cada vez menos atraente de se assistir, com uma vasta quantidade de times jogando na retranca. Salários aumentam em proporções hiperinflacionárias, ano após ano. Com o preço dos ingressos também nas alturas, no Canadá, país do hóquei, apenas os Maple Leafs conseguem lotar o estádio em todos os jogos. O que há de errado, afinal?

A baixa média de gols e o zelo essencialmente defensivo:
Pra começar, o debate maior sobre o jogo hoje em dia gira em torno da sua qualidade e da baixa média de gols, há tempos gravitando em torno de pouco mais de cinco. Times estão cada vez mais defensivos, cada vez mais os shutouts são normais. Vários times praticam a armadilha da zona neutra, o que torna os jogos cada vez mais enfadonhos para se assistir.

A queda da quantidade de gols é diretamente relacionada à evolução da atenção dada à defesa. Isso é um fenômeno que ocorre em todos os esportes e, de certa forma, parece que no hóquei chegou até mais tarde. Os que acompanham o futebol sabem que há tempos se discute essa coisa de mentalidade defensiva e que já se vão os tempos do Santos de Pelé dos ano 60, com a filosofia de ir ao ataque e marcar seis gols para sofrer três tranqüilamente. No hóquei essa era a filosofia do Edmonton Oilers de Wayne Gretzky e Mark Messier, nos anos 80, período que marca o auge da quantidade de gols na NHL.

Nos tempos recentes observamos uma certa involução na filosofia de jogo de vários dos técnicos da liga. De "nós temos de vencer" a "nós não podemos perder", ou de "se eles marcarem um gol, vamos na frente para marcamos dois" a "não podemos deixar, em hipótese alguma, que eles marquem um gol em nós". Enfim, defender primeiro, atacar depois. "Se eu não sofro um gol, já é meio caminho andado, ao menos o empate eu terei, o que me dá 50% de aproveitamento, ótimo". A mesquinharia reinando. O pior de tudo é que não é raro um esquema desses dar certo.

O começo dessa história, na prática, foi em 1995 com New Jersey Devils. A média de gols já vinha caindo antes daquele ano, é verdade, mas ali é o marco, é o ponto de ruptura que nos leva a uma nova era na NHL, justamente porque os Devils tiveram sucesso. Jacques Lemaire implantou com eficiência o esquema da armadilha da zona neutra nos Devils, que surpreenderam os favoritíssimos Red Wings nas finais da Copa Stanley, aplicando-lhes sonoros 4-0 e levando o título. Dali em diante e esquema da armadilha alastrou-se pelos times da liga pelos anos seguintes, simplesmente porque era -- e ainda é -- uma tática eficiente. Alguns times a assumiram como padrão único de jogo, mas é fato que a maior parte deles aplica alguma forma de armadilha.

O sucesso da armadilha da zona neutra é tão evidente que os Devils venceram a Copa Stanley mais duas vezes depois disso e ainda chegaram a uma outra final. (O hóquei dos Devils é tão chato de se ver que nem mesmo a própria torcida agüenta. Mesmo com os três títulos, o time tem uma das menores médias de público da liga.) No ano passado tivemos uma final com dois times primeiramente focados para a defesa. Em 1999 tivemos as enfadonhas finais entre Stars e Sabres, com ambos os times também focados principalmente para a defesa e praticando um hóquei chato de doer.

Pode-se argumentar que um bom jogo defensivo é tão atraente quanto um bom jogo ofensivo. Pode ser. Você pode ter dois times que saibam jogar muito bem defensivamente -- e a série entre Red Wings e Avalanche nas finais de conferência de 2002 é prova viva disso -- sem que o jogo caia para a letargia. E você pode ter dois times jogando somente para frente, como os Jogos das Estrelas, e ter um jogo chatíssimo de se ver, em termos de competitividade. Mas esses são casos de exceção, os Avs e Wings de 2002 não eram times defensivos, mas tinham defesas excelentemente bem compostas.

O ponto central é: uma coisa é ser um time completo e jogar bem defensivamente, outra é ser um time que só joga defensivamente. Se você quer atrair público, não será com dois times jogando para trás que irá conseguir.

A valorização do gol:
Da mesma forma que uma média de cinco gols por jogo é baixa, uma média de, digamos, 15 é alta. Simplesmente porque um placar de 10-5, por exemplo, vulgariza o valor do gol. Um gol é para ser comemorado efusivamente, é para que a torcida grite alto, é o alívio, é o clímax. Não é para ser visto como "ah, tá, foi gol", enquanto se toma um refrigerante olhando para o lado e conversando. Um gol não é uma cesta de dois pontos, dentre 50 outras. Gol é raro e difícil de se marcar, daí tanto o valorizarmos. Portanto, é evidente que a escassez valoriza o gol.

Agora, é claro que a escassez tem seu limite, e isso deve ficar ao gosto do público. Afinal, o público quer é ver uma quantidade x de gols e paga ingresso por isso. Placares de 1-0 tornam realmente o gol ainda mais valorizado, mas acabam por não atrair público, que deseja mais que isso.

Muitos falam que o público norte-americano gosta de placares altos, de números altos e que esse é um dos fatores do baixo sucesso do hóquei por lá. Por isso a contagem de pontos do beisebol e do futebol americano, digamos, se alongam além do necessário; no basquete os placares chegam perto da centena, enquanto no hóquei um gol vale apenas um. Pois bem, se esse fator ridículo fosse o problema, seria combatido de forma ridícula: gols poderiam passar a valer 10, 100, 1000 pontos cada. Daí, teríamos placares altos, supostamente ao gosto dos norte-americanos. Sabemos que o público norte-americano não é idiota, o problema não é este. É que há poucos gols e o hóquei está chato mesmo.

A entrada de mais times na liga nas últimas expansões realizadas também tem sua parcela de culpa na queda de qualidade do jogo. O desencadeamento segue por lógica: mais times, mais jogadores de menos qualidade, empobrecimento do jogo, mais times fracos, menor nível técnico médio, mais esquemas defensivos para parar o adversário (é a arma do mais fraco, em qualquer esporte). Nada contra as novas cidades necessariamente, é mil vezes melhor, por exemplo, ter um time de hóquei em Minnesota do que em Carolina, assim como é melhor ter um time em qualquer cidade canadense do que em qualquer cidade do sudeste norte-americano. Mas é fato que o resultado da expansão está longe do que foi propagandeado.

Diversos analistas defendem a idéia de que o hóquei não é um esporte nacional nos EUA, a despeito de insistentes tentativas de colocá-lo no patamar do basquete, beisebol e futebol americano, ainda que tenham expandido a liga para a festança de 30 times. É verdade, mas é consenso que há diversos pontos que podem ser melhorados para atrair mais público para o esporte, independentemente de haver 24 ou 30 times.

A guerra NHL x NHLPA:
No âmbito do embate entre NHL e NHLPA, os problemas são conhecidos: a média salarial está nas alturas, as franquias se dizem em caos financeiro, poucos são os clubes que lotam seus estádios, e ainda têm de cobrar preços absurdos por um assento. Há discrepâncias colossais em alguns estádios entre preços, num mesmo assento, de uma partida da NBA e uma da NHL.

Há variedade de jogos enfadonhos e há muitas paralisações. Não bastasse toda hora ter pausa para propaganda, o jogo pára a todo instante porque o disco saiu por cima das bordas, ou por icing, ou por passe de duas linhas, ou por defesa do goleiro, ou por penalidade, etc. Tudo isso leva a uma nova disputa de disco.

Este especial sobre a crise que ronda a NHL tem quatro partes e segue na próxima semana com uma matéria sobre idéias para mudar as regras e atrair público, focada essencialmente para alterações no jogo em si. Na terceira parte verificaremos a vitória da turma do agarra-agarra sobre a última (e única, praticamente) tentativa de combate à obstrução no jogo. Na quarta e última parte analisaremos a guerra iminente entre a NHL e a NHLPA.

Marcelo Constantino indica os melhores do ano no cinema: nacional, O homem que copiava; estrangeiro, As invasões bárbaras, disparado.
 
  MAIS GOLS A NHL pode agir para que os jogos tenham mais gols, mas não esperem que volte ao nível dos anos 80, porque não voltará. Os tempos são outros, a mentalidade é outra e todos os jogadores sabem jogar defensivamente muito melhor do que há vinte anos (Paul Chiasson/AP - 02/12/2003)
   
 
  FESTA DA OBSTRUÇÃO Ultimamente tem sido absolutamente normal ser enganchado, agarrado ou empurrado no meio do gelo sem qualquer penalidade marcada contra o infrator (Jeff McIntosh/AP - 07/12/2003)

 

ARMADILHA DA ZONA NEUTRA
Geralmente os times jogam (ou melhor, jogavam) com seus três atacantes, os chamados forecheckers, marcando o time adversário fora da própria zona de defesa, ou seja, saindo até a zona neutra ou de ataque para marcar. A tática da armadilha da zona neutra elimina a figura do forechecker, todos os cinco jogadores ficam atrás esperando pelo adversário, mas protegendo a zona neutra para roubar o disco e partir num 2-contra-1.

Vale citar uma explicação mais detalhada sobre a armadilha, por Barry Melrose: "Na armadilha você não faz forecheck, o que você faz é esperar pelo outro time. O central força o defensor adversário que está com o disco para um canto do gelo. Enquanto isso, o asa do outro canto vem para o meio e, junto ao outro asa, formam basicamente um triângulo ao redor do adversário com o disco. Basicamente você tem cinco jogadores num canto do gelo. Você espera que o defensor vá tentar fazer um passe por entre a armadilha, então você corta o passe e tem um turnover. Para sair da armadilha, o defensor tem de fazer o disco sair deste lado onde estão concentrados os jogadores para o outro, onde estará praticamente vazio. Se ele fizer isso consistentemente, terá algum sucesso. Mas o que acontece é que o defensor tenta fazer o passe por entre a armadilha, aí é interceptado e, bum, de repente é pego num 2-contra-1. É isso que a armadilha faz: cria turnovers.

Turnover -- Quando um time rouba o disco do adversário (ou quando o adversário perde o disco para o time, o que dá no mesmo). No caso da tática da armadilha da zona neutra, geralmente o turnover dá a chance ao time que roubou o disco de um contra-ataque mortal, em 2-contra-1.

 

Edição atual | Edições anteriores | Sobre The Slot BR | Contato | Envie esta matéria para um amigo
© 2002-03 The Slot BR. Todos os direitos reservados.
É permitida a republicação do conteúdo escrito, desde que citada a fonte.
Página publicada em 24 de dezembro de 2003.