Por
Marcelo Constantino
Há algo de errado com a NHL e não é apenas o iminente fim da vigência
do acordo com a NHLPA (o famoso CBA, "Collective Bargaining Agreement",
ou Acordo Coletivo de Trabalho) e a possível paralisação subseqüente.
Nesta temporada possivelmente teremos um número assombroso de shutouts,
assim como a menor média de gols em muitos anos. Média esta que já está
em queda há tempos. A audiência na TV também tem caído e recentemente
a ESPN diminuiu a quantidade de partidas transmitidas para os EUA. Já
tivemos três partidas terminadas em 0-0 nesta temporada e a média dos
jogos está cada vez menos atraente de se assistir, com uma vasta quantidade
de times jogando na retranca. Salários aumentam em proporções hiperinflacionárias,
ano após ano. Com o preço dos ingressos também nas alturas, no Canadá,
país do hóquei, apenas os Maple Leafs conseguem lotar o estádio em todos
os jogos. O que há de errado, afinal?
A baixa média de gols e o zelo essencialmente defensivo: Pra começar,
o debate maior sobre o jogo hoje em dia gira em torno da sua qualidade
e da baixa média de gols, há tempos gravitando em torno de pouco mais
de cinco. Times estão cada vez mais defensivos, cada vez mais os shutouts
são normais. Vários times praticam a armadilha da zona neutra, o que
torna os jogos cada vez mais enfadonhos para se assistir.
A queda da quantidade de gols é diretamente relacionada à evolução da
atenção dada à defesa. Isso é um fenômeno que ocorre em todos os esportes
e, de certa forma, parece que no hóquei chegou até mais tarde. Os que
acompanham o futebol sabem que há tempos se discute essa coisa de mentalidade
defensiva e que já se vão os tempos do Santos de Pelé dos ano 60, com
a filosofia de ir ao ataque e marcar seis gols para sofrer três tranqüilamente.
No hóquei essa era a filosofia do Edmonton Oilers de Wayne Gretzky e
Mark Messier, nos anos 80, período que marca o auge da quantidade de
gols na NHL.
Nos tempos recentes observamos uma certa involução na filosofia de jogo
de vários dos técnicos da liga. De "nós temos de vencer" a "nós não
podemos perder", ou de "se eles marcarem um gol, vamos na frente para
marcamos dois" a "não podemos deixar, em hipótese alguma, que eles marquem
um gol em nós". Enfim, defender primeiro, atacar depois. "Se eu não
sofro um gol, já é meio caminho andado, ao menos o empate eu terei,
o que me dá 50% de aproveitamento, ótimo". A mesquinharia reinando.
O pior de tudo é que não é raro um esquema desses dar certo.
O começo dessa história, na prática, foi em 1995 com New Jersey Devils.
A média de gols já vinha caindo antes daquele ano, é verdade, mas ali
é o marco, é o ponto de ruptura que nos leva a uma nova era na NHL,
justamente porque os Devils tiveram sucesso. Jacques Lemaire implantou
com eficiência o esquema da armadilha da zona neutra nos Devils, que
surpreenderam os favoritíssimos Red Wings nas finais da Copa Stanley,
aplicando-lhes sonoros 4-0 e levando o título. Dali em diante e esquema
da armadilha alastrou-se pelos times da liga pelos anos seguintes, simplesmente
porque era -- e ainda é -- uma tática eficiente. Alguns times a assumiram
como padrão único de jogo, mas é fato que a maior parte deles aplica
alguma forma de armadilha.
O sucesso da armadilha da zona neutra é tão evidente que os Devils venceram
a Copa Stanley mais duas vezes depois disso e ainda chegaram a uma outra
final. (O hóquei dos Devils é tão chato de se ver que nem mesmo a própria
torcida agüenta. Mesmo com os três títulos, o time tem uma das menores
médias de público da liga.) No ano passado tivemos uma final com dois
times primeiramente focados para a defesa. Em 1999 tivemos as enfadonhas
finais entre Stars e Sabres, com ambos os times também focados principalmente
para a defesa e praticando um hóquei chato de doer.
Pode-se argumentar que um bom jogo defensivo é tão atraente quanto um
bom jogo ofensivo. Pode ser. Você pode ter dois times que saibam jogar
muito bem defensivamente -- e a série entre Red Wings e Avalanche nas
finais de conferência de 2002 é prova viva disso -- sem que o jogo caia
para a letargia. E você pode ter dois times jogando somente para frente,
como os Jogos das Estrelas, e ter um jogo chatíssimo de se ver, em termos
de competitividade. Mas esses são casos de exceção, os Avs e Wings de
2002 não eram times defensivos, mas tinham defesas excelentemente bem
compostas.
O ponto central é: uma coisa é ser um time completo e
jogar bem defensivamente, outra é ser um time que só joga
defensivamente. Se você quer atrair público, não será com dois times
jogando para trás que irá conseguir.
A valorização do gol: Da mesma forma que uma média de cinco gols
por jogo é baixa, uma média de, digamos, 15 é alta. Simplesmente porque
um placar de 10-5, por exemplo, vulgariza o valor do gol. Um gol é para
ser comemorado efusivamente, é para que a torcida grite alto, é o alívio,
é o clímax. Não é para ser visto como "ah, tá, foi gol", enquanto se
toma um refrigerante olhando para o lado e conversando. Um gol não é
uma cesta de dois pontos, dentre 50 outras. Gol é raro e difícil de
se marcar, daí tanto o valorizarmos. Portanto, é evidente que a escassez
valoriza o gol.
Agora, é claro que a escassez tem seu limite, e isso deve ficar ao gosto
do público. Afinal, o público quer é ver uma quantidade x de gols e
paga ingresso por isso. Placares de 1-0 tornam realmente o gol ainda
mais valorizado, mas acabam por não atrair público, que deseja mais
que isso.
Muitos falam que o público norte-americano gosta de placares altos,
de números altos e que esse é um dos fatores do baixo sucesso do hóquei
por lá. Por isso a contagem de pontos do beisebol e do futebol americano,
digamos, se alongam além do necessário; no basquete os placares chegam
perto da centena, enquanto no hóquei um gol vale apenas um. Pois bem,
se esse fator ridículo fosse o problema, seria combatido de forma ridícula:
gols poderiam passar a valer 10, 100, 1000 pontos cada. Daí, teríamos
placares altos, supostamente ao gosto dos norte-americanos. Sabemos
que o público norte-americano não é idiota, o problema não é este. É
que há poucos gols e o hóquei está chato mesmo.
A entrada de mais times na liga nas últimas expansões
realizadas também tem sua parcela de culpa na queda de qualidade do
jogo. O desencadeamento segue por lógica: mais times, mais jogadores
de menos qualidade, empobrecimento do jogo, mais times fracos, menor
nível técnico médio, mais esquemas defensivos para parar o adversário
(é a arma do mais fraco, em qualquer esporte). Nada contra as novas
cidades necessariamente, é mil vezes melhor, por exemplo, ter um time
de hóquei em Minnesota do que em Carolina, assim como é melhor ter um
time em qualquer cidade canadense do que em qualquer cidade do sudeste
norte-americano. Mas é fato que o resultado da expansão está longe do
que foi propagandeado.
Diversos analistas defendem a idéia de que o hóquei não é um esporte
nacional nos EUA, a despeito de insistentes tentativas de colocá-lo
no patamar do basquete, beisebol e futebol americano, ainda que tenham
expandido a liga para a festança de 30 times. É verdade, mas é consenso
que há diversos pontos que podem ser melhorados para atrair mais público
para o esporte, independentemente de haver 24 ou 30 times.
A guerra NHL x NHLPA: No âmbito do embate entre NHL e NHLPA, os
problemas são conhecidos: a média salarial está nas alturas, as franquias
se dizem em caos financeiro, poucos são os clubes que lotam seus estádios,
e ainda têm de cobrar preços absurdos por um assento. Há discrepâncias
colossais em alguns estádios entre preços, num mesmo assento, de uma
partida da NBA e uma da NHL.
Há variedade de jogos enfadonhos e há muitas paralisações. Não bastasse
toda hora ter pausa para propaganda, o jogo pára a todo instante porque
o disco saiu por cima das bordas, ou por icing, ou por passe
de duas linhas, ou por defesa do goleiro, ou por penalidade, etc. Tudo
isso leva a uma nova disputa de disco.
Este especial sobre a crise que ronda a NHL tem quatro partes e segue
na próxima semana com uma matéria sobre idéias para mudar as regras
e atrair público, focada essencialmente para alterações no jogo em si.
Na terceira parte verificaremos a vitória da turma do agarra-agarra
sobre a última (e única, praticamente) tentativa de combate à obstrução
no jogo. Na quarta e última parte analisaremos a guerra iminente entre
a NHL e a NHLPA.
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Marcelo
Constantino indica os melhores do ano no cinema: nacional,
O homem que copiava; estrangeiro, As invasões
bárbaras, disparado. |
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MAIS GOLS A NHL pode agir
para que os jogos tenham mais gols, mas não esperem que volte
ao nível dos anos 80, porque não voltará.
Os tempos são outros, a mentalidade é outra e todos
os jogadores sabem jogar defensivamente muito melhor do que há
vinte anos (Paul Chiasson/AP - 02/12/2003) |
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FESTA DA OBSTRUÇÃO Ultimamente
tem sido absolutamente normal ser enganchado, agarrado ou empurrado
no meio do gelo sem qualquer penalidade marcada contra o infrator
(Jeff McIntosh/AP - 07/12/2003) |
ARMADILHA DA ZONA NEUTRA |
Geralmente os times jogam (ou melhor, jogavam) com seus três atacantes,
os chamados forecheckers, marcando o time adversário fora
da própria zona de defesa, ou seja, saindo até a zona neutra ou
de ataque para marcar. A tática da armadilha da zona neutra elimina
a figura do forechecker, todos os cinco jogadores ficam atrás
esperando pelo adversário, mas protegendo a zona neutra para roubar
o disco e partir num 2-contra-1.
Vale citar uma explicação mais detalhada sobre a armadilha, por
Barry Melrose: "Na armadilha você não faz forecheck, o que
você faz é esperar pelo outro time. O central força o defensor adversário
que está com o disco para um canto do gelo. Enquanto isso, o asa
do outro canto vem para o meio e, junto ao outro asa, formam basicamente
um triângulo ao redor do adversário com o disco. Basicamente você
tem cinco jogadores num canto do gelo. Você espera que o defensor
vá tentar fazer um passe por entre a armadilha, então você corta
o passe e tem um turnover. Para sair da armadilha, o defensor
tem de fazer o disco sair deste lado onde estão concentrados os
jogadores para o outro, onde estará praticamente vazio. Se ele fizer
isso consistentemente, terá algum sucesso. Mas o que acontece é
que o defensor tenta fazer o passe por entre a armadilha, aí é interceptado
e, bum, de repente é pego num 2-contra-1. É isso que a armadilha
faz: cria turnovers.
Turnover -- Quando um time rouba o disco
do adversário (ou quando o adversário perde o disco para o time,
o que dá no mesmo). No caso da tática da armadilha da zona neutra,
geralmente o turnover dá a chance ao time que roubou o disco de
um contra-ataque mortal, em 2-contra-1. |
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