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13 de dezembro de 2002
Agarra-agarra não é hóquei

Por Marcelo Constantino

Eu sempre fui um descrente em relação às notícias de que a NHL enrijeceria as regras contra a obstrução e o agarra-agarra. Não é de hoje que a liga promete isso, mas somente nesta temporada de fato uma atitude foi tomada. Passado algum tempo, agora começo a ter esperança de que a decisão seja realmente para valer.

O hóquei norte-americano sempre foi caracterizado pela maior necessidade de jogo duro — da violência física mesmo, por que não dizer? —, em contraponto ao hóquei europeu, tido como mais técnico. Até o início dos anos 90, os times da NHL geralmente possuíam jogadores apenas para intimidar os adversários. Tal qual Wayne Gretzky tinha o seu Semenko na retaguarda, para dar o aviso implícito "se você chegar perto do Wayne, eu te quebro a cara", a maior parte da liga seguia o mesmo caminho.

Claro, Gordie Howe talvez seja o maior exemplo de jogador que fazia gols e brigava no gelo. Com a evolução do esporte e a chegada de cada vez mais de europeus na NHL, jogadores passaram a ter de desempenhar os dois papéis e o espaço para o intimidador típico é cada vez menor hoje em dia. Permanece aberto, entretanto, o espaço para o jogador puramente técnico, que não está no gelo para brigar.

Ainda hoje há times que não dispensam um jogador tipicamente briguento, mas isso é algo em extinção. Basta ver o papel reservado a Scott Parker, uma incrível escolha de primeira rodada, no Colorado Avalanche. Parece que apenas a gerência do Chicago Blackhawks ainda está com a cabeça na NHL dos anos 80, já que contratam verdadeiros bondes, como Ryan VandenBussche e Louis DeBrusk. Ao menos agora trouxeram Chris Simon, que sabe jogar hóquei além de brigar.

Com o tempo, também foram crescendo as técnicas de parar as jogadas. Tal qual no futebol, onde vários times adotam a tática de fazer faltas a todo instante, boa parte das vezes de forma impune, no hóquei os menos habilidosos passaram a usar o "grude" para segurar o adversário. Quem nunca viu uma partida de hóquei onde os atacantes são claramente agarrados, seguros, enganchados e tudo o mais, sem que haja qualquer tipo de marcação de penalidade? Sim, chegamos a um tempo em que isso passou a ser considerado normal. Além da habilidade para o jogo, o atleta precisaria de uma técnica para se livrar dos grudentos defensores adversários.

Os amantes desse estilo, que chamo de agarra-agarra, não podem se esquecer de agradecer ao New Jersey Devils, que lançou esta "forma" de jogo entre 1994 e 1995, infelizmente obtendo grande sucesso.

Tradicionalmente, os juízes são mais complacentes nos playoffs da NHL. Não é à toa que a Stanley Cup é propagandeada como o troféu mais difícil de ser conquistado e que os playoffs são uma nova temporada, diversa da regular — mais que em qualquer outro esporte norte-americano. Isso não irá mudar nesta temporada, não há com o que se preocupar. Agora, os juizes podem seguir a vista grossa para jogadas mais ríspidas, tudo bem. Mas não para o "grude".

Há uma onda crescente de reclamações contra os juizes em relação à nova filosofia da liga, e apenas duas delas têm razão de ser: quando questionam a falta de critério para as marcações (e nisso está incluso o aumento do número de jogadores se atirando no gelo para cavar faltas) e quando afirmam que alguns juizes estão marcando penalidades em simples trancos. Embora residuais, são os dois pontos fracos da aplicação desta nova filosofia, que deverão ser ajustados com o tempo. Caso contrário, os abutres aproveitar-se-ão das falhas e dá má aplicação de uma boa idéia para exterminá-la. Dito isso, vamos ao ataque aos que reclamam porque são incompetentes mesmo.

O ponto em que quero tocar é a reclamação barata. São aqueles que, no fundo, se sentem frustrados por não poder mais obstruir o adversário impunemente.

Os jogadores reclamam hoje do "excesso de rigidez" contra o agarra-agarra da mesma forma com que os motoristas brasileiros reclamam do "excesso de rigidez" do Código Nacional de Trânsito. Da mesma forma que lemos e ouvimos absurdos de motoristas "denunciando" supostas "indústrias das multas" porque "só colocam pardais (em São Paulo, caetanos) ou radares onde é sabido que os carros andam em alta velocidade", lemos e ouvimos jogadores reclamando que os jogos de agora são decididos pelos times de vantagem numérica, tamanha é a quantidade de penalidades marcadas pelos juízes. É infrator reclamando por ter sido pego infringindo. Se não há infração, não há multa, não há penalidade!

Vamos ao básico: as penalidades ocorrem para acabar com o agarra-agarra e as obstruções. Como as infrações não deixam de ser cometidas, dá-lhe mais penalidades. É simples assim.

De certa forma, isso me causa estranheza, porque enxergo nisso tudo uma nova filosofia, uma simples aplicação da regra que não era aplicada. Sim, os juizes provavelmente estão pecando pelo excesso. Antes pecavam pela omissão. Não pensem que a temporada espetacular de Mario Lemieux nada tem a ver com a mudança das regras. O time de vantagem numérica dos Penguins que o diga.

Em hipótese alguma meus leitores devem interpretar ou concluir que sou um entusiasta da diminuição do número de trancos e das brigas na NHL. Muito pelo contrário, adoraria principalmente que houvesse mais daqueles trancos voadores e certeiros. Essa é uma das principais características do hóquei, que leva tanta gente a acompanhar o esporte e não deve ser penalizada. Não é ficar puxando, agarrando, enganchando o adversário. Essa tática de agarrar o adversário vem dando certo até no boxe, e, por isso, chegamos a ter um picareta como Evander Holyfield campeão dos pesos-pesados.

Ainda que faça parte da tradição da NHL fatos como "Ulf Samuelsson encerrou a carreira de Cam Neely", precisamos esclarecer que a estrela do jogo é Neely. Por isso, é necessário (re)abrir espaços para que brilhem novos Gretzkys e Larionovs, apenas para citar dois exímios jogadores avessos ao estilo mais duro do jogo.

Se o objetivo é parar o atacante adversário sem cometer penalidade, que pare no disco. Ou com um tranco voador.

Marcelo Constantino é gerente do Asas Cariocas, time campeão da Copa LBH 2002.
ISTO É INFRAÇÃO Todd Bertuzzi (44), do Vancouver, tenta se livrar do defensor Willie Mitchell, do Minnesota, que parte para agarrá-lo. O juiz marcou corretamente a penalidade (Richard Lam/CP - 07/12/2002)
 
ISTO É UM TRANCO LEGAL Georges Laraque, do Edmonton, mandando Matt Cullen, do Anaheim, voar contra as bordas. Muito embora casos mais perigosos deste tipo sejam penalizados como boarding, este é um tranco clássico, que deve ser preservado (Chris Urso/AP - 05/04/2002)
 
BRIGAR É ATRAÇÃO DO JOGO Dave Scatchard, dos Islanders, derruba Shayne Corson, dos Leafs, durante uma boa briga em um clássico feroz (Ed Betz/AP - 06/12/2002)
 
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Página publicada em 11 de dezembro de 2002.