Por: Thiago Leal

Um velho conto folclórico irlandês descreve Jack, o ferreiro, como um bêbado que fez um pacto com o Diabo. Na hora de pagar ao tinhoso com sua alma, Jack o enganou e fugiu. Então, quando morreu, Jack foi proibido de entrar no Céu, por ter sido um homem muito mal em vida e por ter feito um pacto satânico. Mas também não foi aceito no Inferno, por ter enganado o Diabo e não ter cumprido seu pacto. A alma de Jack então foi condenada à escuridão eterna. Sem mais o que fazer, o velho ferreiro talhou uma abóbora e colocou dentro dela uma vela, fazendo uma lanterna primitiva para iluminar seu caminho.

Mais que uma velha estória para assustar crianças e evitá-las que fossem dormir muito tarde ("Não fiquem acordadas, ou o Jack vem pegar vocês..."), essa lenda teve forte influência na cultura ocidental, principalmente para a festa de Dia das Bruxas. O conto de Jack é só mais um dos inúmeros que listam situações onde um mortal comum realiza um pacto com o Diabo. Dentro da ficção, esse tema vai desde o erudito, com o (excelente) livro Fausto de Goethe até o popular, como o personagem de quadrinhos Spawn, criado pelo desenhista canadense e amante de hóquei no gelo Todd McFarlane, ou o Motoqueiro Fantasma, personagem da Marvel Comics que, recentemente, virou filme estrelado por Nicolas Cage. Em muitos desses casos, o pacto com o Diabo é representado através de um contrato formal, com direito a assinatura do pactuante.

Na vida real, há quem acredite que o Diabo realmente existe e que você pode fazer um pacto com ele, dando sua alma em troca de alguma coisa (riqueza, sucesso, etc.) Seria um "caminho mais fácil" para conseguir as coisas. Este que vos fala, pessoalmente, é um homem completamente céptico, que não acredita em nenhuma dessas histórias. Mas acredita bastante no hóquei no gelo, nos diabos que mandam neste esporte (o New Jersey Devils) e num homem chamado Ilya Kovalchuk. Este, por sua vez, realizou com autêntico pacto com os Diabos de Nova Jersey, com direito a contrato assinado. A dúvida é se este será um pacto duradouro, como o de Fausto, que pagou com sua alma, ou se em pouco tempo o jogador russo enganará os Diabos e os deixará para trás, como Jack, o ferreiro.

A saída de Kovalchuk era aguardada por ansiedade por qualquer torcedor que se preze, e os dias para a expiração de seu contrato com o Atlanta Thrashers eram contatos com a aflição de uma criança que espera a chegada do Natal. Muita gente em Manhattan acreditava na possibilidade do russo desembarcar em Nova York, enquanto torcedores do Anaheim se encheram de esperança após a saída de Jean-Sebastien Giguere, como se ainda assim houvesse espaço suficiente no teto salarial do clube. E todo esse desejo por Kovalchuk não é para menos: o russo é um protótipo de jogador completo, com grande habilidade e forte presença física, que faz seus 1,87m parecerem mais de 1,90m. Não é absurdamente habilidoso, como Alexander Ovechkin, mas é mais forte. Enfim, descrever Kovalchuk é perda de tempo, uma vez que todo mundo por aqui o conhece muito bem.

Por quase dez anos, Kovy foi a cara do Atlanta Thrashers. O russo praticamente começou sua carreira profissional com o time estadunidense, quando foi a primeira escolha da história da franquia, em 2001. Antes disso, chegou a jogar dois anos pelo Spartak de Moscou, mas ainda muito jovem. Arrasou em sua primeira temporada, com 51 pontos em 65 jogos. Mesmo assim, foi incapaz de conseguir mais que o campeonato da Divisão do Sudeste de 2007 para o time, única ocasião onde disputou pós-temporada — mesmo assim, foi varrido na primeira rodada em confronto com o New York Rangers. Esse recesso de pós-temporada que sempre assolou a vida de Kovalchuk permitiu que ele se tornasse um fiel defensor da Seleção Russa, ganhando duas medalhas de ouro com o time pelo Campeonato Mundial, sendo eleito o Jogador Mais Valioso da competição em 2009. Kovalchuk também já foi nomeado embaixador dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, que será realizado em Sochi, na Rússia.

O insucesso dos Thrashers obviamente não atrapalhou o sucesso de Kovalchuk na NHL. O russo jogou em três Jogos das Estrelas e ganhou um Troféu Maurice "Rocket" Richard de artilheiro. Isso porque sempre fez grandes temporadas com a camisa dos Thrashers e havia quem acreditasse que Kovalchuk deveria ter permanecido com a franquia do sul para um dia fazê-la campeã, como Mike Modano já fez pelo Dallas ou Vincent Lecavalier pelo Tampa Bay. Mas, com o contrato vencendo no final da temporada, Kovalchuk preferiu o "caminho mais fácil": por que lutar para tentar construir um time que pode vir a nunca ter sucesso se posso mudar para uma franquia estabelecida, com melhores chances de conquistar uma Copa? As ofertas para que o russo ficasse em Atlanta foram generosas. Mesmo assim, Kovalchuk assinou seu pacto com os Diabos e deixou os Thrashers.

Como a transação se deu por meio de troca, o contrato de Kovalchuk foi mantido praticamente da mesma forma que era em Atlanta. O time ao qual ele serve é outro, mas o contrato, salário, tempo de expiração continuam o mesmo. O que significa que, ao final da temporada, Kovalchuk é livre para assinar com quem quiser.

E se ele não quiser ficar no New Jersey?
Ao final da temporada Kovalchuk terá passe livre e jogará onde quiser. Inclusive em New Jersey, onde acredito que ele ficará, e os Devils não exitarão em abrir espaço no teto para renegociar seu salário. Pessoalmente, não imagino time melhor para Kovalchuk jogar — claro, falando com olhar de crítico, porque se pudesse escolher, iria querê-lo no meu time.

Mas e se Kovy não quiser continuar?

O motivo pelo qual Kovalchuk deixou o Atlanta e assinou com o New Jersey foi o sucesso. Mas e se o sucesso apenas não bastar e o jogador quiser muito mais dinheiro? OK, sabemos que o Atlanta ofereceu bastante. Mas lá não havia sucesso. O que interessa aqui são a soma das duas coisas. O New York Islanders tem bastante espaço na folha salarial e, como todos sabemos, não hesita muito antes de cometer qualquer insanidade. O mesmo vale para o New York Rangers, que não tem espaço, mas consegue rapidinho. E paga o quanto Kovalchuk quiser. OK, o sucesso recente das duas franquias não chega aos pés do que se espera do New Jersey Devils, mas as duas franquias têm tradição e capacidade de, dentro de algum tempo, brigar pelas melhores posições. O Toronto poderia entrar nessa lista, ainda mais com o projeto de Brian Burke.

E se não for dinheiro, mas Kovalchuk quiser jogar numa franquia com outros jogadores habilidosos? Em outras palavras, além do sucesso, o russo poderia buscar por um grande elenco, por um time formado por atletas de sua categoria. Aí Kovalchuk poderia optar por Chicago Blackhawks, Detroit Red Wings ou San Jose Sharks, todos eles com a necessidade de abrir espaço na folha salarial.

Por que ficar no New Jersey?
O pacto com o Diabo sempre representa uma troca. Fausto faz um pacto com o demônio Mefistófeles, vulgo Mefisto, para ter sucesso e progresso em sua dedicação à medicina. Em troca, Fausto deu a Mefisto sua alma.

Ilya Kovalchuk entrega-se de corpo e alma ao New Jersey Devils, pelo menos por alguns (poucos) meses. Em troca, ganha um time estável e bem-sucedido, com reais chances de ganhar (mais) uma Copa Stanley. Alma em troca de sucesso. Bem clássico. Com os Devils, Kovalchuk terá a chance de entrar com algum favoritismo nos playoffs. No momento que este artigo é fechado, o New Jersey ocupa a segunda posição no Leste, atrás apenas do Washington Capitals. Ou seja, entra na pós-temporada com mando de gelo garantido até a final de conferência, caso ela seja contra o Washington, se não, teria vantagem inclusive na decisão, assim como na decisão da Copa Stanley. Nunca os Devils tiveram uma fase tão boa depois de seu último campeonato, em 2003. Kovalchuk chega ao time em um momento perfeito para impulsioná-lo a mais uma decisão.

Mas caso opte por extender o pacto e permanecer no New Jersey, Kovalchuk estará escolhendo estabilidade a (aparentemente) longo prazo. Alguém lembra quando os Devils ficaram fora dos playoffs pela última vez? Foi em 1996, quando muita gente que acompanha hóquei no Brasil sequer sonhava com o esporte, e isso vale para mim. Os Devils, sempre mal-falados, mas sempre favoritos, como já dissemos aqui, são de uma regularidade impressionante. Para quem viveu sede de playoffs por tanto tempo, caso de Kovalchuk, jogar no time que sempre vai às decisões seria interessante, não?

Além disso, o estilo físico de jogo que os Devils mantém até hoje poderia garantir a Kovalchuk liberdade para que ele realizasse suas jogadas com mais facilidade, além de que o próprio Kovalchuk muitas vezes se entrega a um estilo mais físico e agressivo.

Em troca da permanência de Kovalchuk, os Devils ganham habilidade no elenco. Não que Patrik Stefan não seja um jogador habilidoso. Não que nomes como Scott Niedermayer e Brendan Shanahan não tenham passado pela franquia. Mas o New Jersey atrai muita antipatia por ser adepto do já citado jogo mais físico.

Kovalchuk é sinônimo de hóquei muito bem jogado e os Devils podem ser vistos de outra forma com um nome dessa categoria no elenco.

Thiago Leal é devoto do Nintendo DS e do Google.
French Kheldar
Essa cena não tem previsão de se repetir.
(20/12/2008)

Arquivo TheSlot.com.br
Esse é de responsabilidade de Ilya Kovalchuk.

Jim McIsaac/Getty Images
Mais habilidade para os Devils: quero ver quem vai falar mal agora.
(05/02/2010)
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Página publicada em 11 de fevereiro de 2010.