O novo formato da tabela da NHL não garante que os melhores times de cada conferência se enfrentarão ao menos uma vez ao longo da temporada, mas certamente ele proporciona uma chance muito maior de isso acontecer do que o calendário antigo. Tanto é que nas três últimas temporadas, quando pouco se viu conforntos interconferências não houve um só jogo do tipo já nos dois últimos meses de temporada regular. A última vez que isso ocorreu fora em março de 2004, com um empate entre Red Wings e Lightning.
Agora voltou a ocorrer, com a partida de terça-feira entre Sharks e Bruins. Para a NHL foi ainda um prato cheio, pois foi um jogo que gerou manchetes — e manchetes positivas — por cerca de uma semana e atendeu a todas as expectativas. Nesse ponto, foi importante um ingrediente extra: a segunda volta de Joe Thornton a Boston depois da grande troca entre ambos os times, que muitos consideram a gênese do atual grande momento vivido pelas duas equipes. Thornton, por exemplo, é o jogador com o maior número de pontos desde a troca, e não por acaso tornou-se o cérebro dos Sharks.
Não só o cérebro, aliás, mas o coração também. Quando em Boston, era como se ele se recusasse a aproveitar-se de seu tamanho (1,93 m e 106 kg) para atrapalhar a vida dos goleiros adversários, mas na Califórnia parece que ele aprendeu essa "arte". E usou-a para ajudar seu time a derrotar seu ex-time. A vitória por 5-2 foi, claro, um esforço coletivo, tanto é que 11 jogadores dos Sharks escreveram seus nomes na ficha técnica da partida, mas foi o gol de Thornton, originado justamente em um momento em que ele se plantou à frente da área adversária, que praticamente decretou que os Sharks voltam a liderar a liga em pontos perdidos, já que têm quatro pontos e quatro jogos a menos que seus rivais do outro lado dos Estados Unidos.
A explicação de Thorton para o gol ("Eu não sabia onde eu estava", confessou depois do jogo) até soa convincente em relação ao seu passado, mas apenas para quem não o vê jogar desde sua última partida com a camisa dourada e preta. E, com a classe de sempre, preferiu fugir da polêmica de marcar um gol no time que o trocou: "Foi só mais um gol, nada de mais." Ao menos a vitória teve um sabor especial? "Não. Consideramos só um desafio. Temos feito isso o ano todo, concentrando-nos em cada jogo." Alguém consegue imaginar Sean Avery dando tais declarações?
Esse é só mais um dos motivos por que a torcida de Boston o recebeu tão bem na noite de terça-feira. Tudo bem que ele foi vaiado ao marcar o gol, ainda que de maneira quase irônica, mas seria pedir um pouco demais que uma passional torcida ignorasse o momento em que seu time praticamente dava adeus a qualquer esperança de vitória. Mas é só lembrarmo-nos de que Jaromír Jágr era vaiado sempre que tocava no disco quando voltava a Pittsburgh, que percebemos que a relação de amor que existe entre atletas e torcedores muitas vezes se resume ao período em que todos vestem a mesma camisa.
Para quem estava vestindo as camisas pretas naquela noite, pior do que a noção de que os Sharks têm um elenco melhor (ainda mais com as contusões que têm assolado Boston) foi a exposição de seus pontos fracos. Os Sharks não só demonstraram mais técnica, que era o que de fato se esperava, mas também foram (muito) mais velozes e venceram até o duelo físico, em que muitos poderiam apostar nos Bruins. Em termos de face-offs, foi até covardia: o San Jose venceu 33 e perdeu meros 15.
Apesar desses números, não foi a lavada que se poderia esperar. O problema dos Bruins esteve limitado ao terceiro período. Nos dois primeiros, saíram com vantagem de 2-1, um bom sinal, já que até aquele ponto o time ainda não tinha perdido nenhum dos 28 jogos nesta temporada em que chegou ao segundo intervalo na frente. Para tudo existe uma primeira vez, e pareceu no mínimo adequado que esta primeira vez tenha vindo nas mãos de um time que tem assombrado o Oeste desde outubro.
Um time que não se deixou abater e foi em busca da virada. Sim, foi em busca, porque os Bruins não se acomodaram; eles simplesmente se cansaram. "Nós não encontramos as respostas [para a tática dos Bruins] no começo do jogo", explicou Thornton. "Mas na segunda metade da partida o gelo meio que entortou a nosso favor."
Os jogadores dos Bruins preferiram não se apoiar no discurso do cansaço, embora este fosse claro em certos momentos. O defensor Andrew Ference falou em acomodação: "No terceiro período simplesmente nos acomodamos. Não consigo me lembrar de nenhuma boa marcação que tenhamos feito ou de bons lances na zona deles." Falta de boa marcação ou de bons lances? Não me parece um problema de desleixo, mas de cansaço, mesmo. Ainda mais em um time que ainda não tinha sofrido um debacle no terceiro período este ano.
A temporada da NHL é dura e desgastante. Pode muito bem ser que este jogo tenha sido uma exceção para os Bruins. Pode até ser que o time tenha, sim, se acomodado depois de sair na frente contra um time como os Sharks. Mas pode também ser um mau sinal para os playoffs, e a imprensa local já se apressou a levantar essa hipótese, algo nada surpreendente se levarmos em consideração que os Bruins são o único time profissional de Boston que não levantou nenhum caneco nesta década e já vivem um jejum de quase 40 anos.
As contusões que acundam também são um mau sinal. Só na terça-feira os Bruins perderam dois pontas direitas, Petteri Nokelainen e Chuck Kobasew, além de já estarem sem Michael Ryder. Não se sabe quanto tempo cada um deles vai ficar fora: Kobasew voltou no terceiro período, mas o time não esconde que ele está contundido e Nokelainen teve uma contusão no olho que parece séria e Ryder não deve voltar antes de duas semanas. A sorte dos Bruins é que temos ainda dois meses antes de os playoffs começarem e há tempo para detectar — e resolver — os problemas.
Enquanto isso, os Sharks não só têm mantido sua enfermaria vazia, como também são um dos poucos times da liga que possuem quatro linhas de verdade. No jogo de terça, não é nenhum absurdo dizer que a melhor linha foi a de Mike Grier, Jonathan Cheechoo e Tomas Plihal, linha esta que é de tranco em San Jose, mas em Tampa poderia muito bem ser a primeira ou segunda linha. Os Sharks já podem ligar o piloto automático e seguir em velocidade de cruzeiro, porque só um desastre sem precedentes lhes tira o título da divisão, restando apenas a morna briga com os Red Wings pela melhor campanha do Oeste.