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16 de janeiro de 2004
Impasse à beira do abismo

Por Marcelo Constantino

O problema central da guerra entre a NHL e a NHLPA (NHL Players Association, o sindicato dos jogadores da NHL) é simples. A sua solução é que é complicadíssima, porque demanda concessões de parte a parte. E, naturalmente, uma parte acha que a outra é que deve ceder mais.

O último acordo entre as partes, o CBA ("Collective Bargaining Agreement", ou Acordo Coletivo de Trabalho) foi assinado em 1994, depois de alguns meses de locaute, que encurtou a temporada de 1994-1995 em 36 jogos por equipe, a ponto dos times de uma conferência jogarem contra times da outra em apenas uma exclusiva ocasião: na final, entre Detroit Red Wings e New Jersey Devils.

O acordo assinado tem teto salarial para novatos, mas não para veteranos, e dá passe livre aos jogadores com mais de 31 anos de idade. Foi estendido por duas vezes, a pedido da NHL, para que, segundo a própria, houvesse paz durante as Olimpíadas e a expansão. Expira agora ao fim desta temporada de 2003-2004 e a NHL já avisou que não irá estendê-lo novamente.

O fim da vigência do acordo chega em péssimo momento: também está no final a vigência do milionário contrato da NHL com a ESPN e ABC. Com a audiência do esporte sem registrar qualquer crescimento considerável, dificilmente a liga conseguirá um novo contrato com as redes de TV em bases semelhantes. Ainda mais agora que a ESPN tem contrato com a NBA por mais uma penca de anos. Cada vez mais é nítido que o hóquei não é um esporte nacional nos Estados Unidos e que está a léguas de distância da popularidade e rentabilidade dos outros esportes: futebol americano, basquete, beisebol NASCAR e, misericórdia!, golfe.

Ainda assim, pasmem, os salários da NHL estão entre os maiores dentre esses esportes. A média salarial da liga disparou de US$ 231 mil em 1990-91 para mais de US$ 1,8 milhão em 2002-03. Na NFL a média é de US$ 1,1 milhão.

O que explica isso? Uma concorrência irracional entre franquias, oferecendo cada vez mais altos salários aos jogadores. Com o acordo de 1994 e as regras estabelecidas para os jogadores com passe livre, os times passaram a ter a opção de se recarregar ao invés de renovar e reconstruir o elenco. Em outras palavras, se a franquia tem dinheiro, ela pode optar por contratar novos jogadores de peso com passe livre em vez de investir em jovens prospectos para o futuro. Assim o fazem os Rangers (sem qualquer sucesso), Maple Leafs, Red Wings e Avalanche (os dois últimos com grande sucesso e sem descuidar do investimento em jovens valores).

Como o mercado de jogadores com passe livre tornou-se um dos grandes pilares no acordo atual, há uma considerável concorrência entre os times pelos jogadores, o que só faz aumentar os salários. Irracionalmente, várias franquias ofereceram salários irreais a jogadores, promovendo uma verdadeira escalada inflacionária na liga.

Para conseguir cobrir os custos, já que não houve considerável aumento de público e nem mesmo de receita, os times também promoveram uma escalada inflacionária nos preços dos ingressos nos estádios. Ainda que se argumente que Wings, Avs e Leafs mantêm suas arenas lotadas toda noite (ou que para ver as estrelas do time é necessário pagar caro mesmo), temos de reconhecer que são exceções no mercado. No caso desses times o preço do ingresso está realmente compatível com a demanda. Mas há mercados que claramente não comportam o alto preço, como Ottawa. Além de estar seguidamente entre os melhores da liga nos últimos anos, Ottawa não é como New Jersey ou Carolina, locais onde o hóquei não é lá muito popular e onde as médias de público são baixas, independentemente da situação do time (os Devils são os atuais campeões e amargavam uma lamentável 23ª colocação no ranking das médias de público nesta temporada, até sexta-feira passada).

Junte tudo isso, escalada inflacionária de salários e ingressos sem aumento de público e receita e você tem a crise financeira na liga, com sua faceta mais visível sendo a concentração do mercado. Ainda assim, a despeito do que se imagina, a concentração não é tão pesada. Por exemplo, os dez times que mais gastam concentram pouco menos que 50% do total das despesas com folhas de pagamento na NHL.

Há uma hegemonia, sim, dentro do gelo, mas que não está diretamente ligada à concentração de recursos na liga. De 1995 para cá, em TODAS as finais de Copa Stanley ao menos um desses times estava presente: Detroit, Colorado, Dallas ou New Jersey. São também os únicos que venceram a Copa nesse período. Destes, apenas Detroit e Colorado se mantiveram sempre como um dos favoritos ao título durante todas as temporadas; Dallas e Devils já chegaram a ficar fora dos playoffs. São nove finais, com 18 possíveis times. O time que mais gastou no período, o New York Rangers, sequer se classifica para os playoffs há seis anos.

Os dois atores principais --
O Comissário da NHL, Gary Bettman, e o Diretor Executivo da NHLPA, Bob Goodenow, são as figuras que mais aparecem nesse cenário extra-gelo. Bettman já sinalizou: é necessário reverter a escalada inflacionária de salários e ingressos. Isso parece ser consenso. Os jogadores reconhecem que estão ganhando dinheiro demais, o que já é um avanço. A discórdia é quanto ao que fazer para chegar ao equilíbrio.

Afirmando que o atual modelo de acordo não funciona, Bettman diz querer "alguma forma de relação entre receita e despesa", o que, embora vago, deve significar um teto salarial. Teto salarial a NHLPA não quer nem ouvir.

"Gary diz que gosta do sistema do futebol [americano, a NFL].", diz Goodenow. "Então, se isso quer dizer teto salarial, ele sabe que os jogadores acreditam fortemente no princípio de mercado, não acreditamos em tetos. Se os times decidirem que estão pagando demais aos jogadores, o mercado deverá refletir isso e eles irão pagar menos. E eles podem fazer isso dentro do sistema atual". Ele tem certa razão nesse liberalismo radical de mercado, apenas desconsidera o fator concentração de mercado e finge acreditar que o mercado é um bom regulador.

No Canadá, berço do hóquei da NHL, o problema é mais grave ainda, em boa parte devido à paridade entre os dólares canadense e norte-americano. Com exceção do Toronto Maple Leafs, todas as demais franquias têm problemas financeiros. O Ottawa quebrou em plena temporada passada, quando chegou às finais de conferência. As receitas desses times são em grande parte em dólar canadense, mas a maior parte das despesas é em (ou indexada ao) dólar norte-americano, moeda mais forte.

O que deverá ocorrer? --
Ninguém quer perder e a maior perda para ambos os lados é não haver hóquei. Eu acredito que a NHLPA cederá na questão do teto, mas impondo outros pontos à NHL para compensar. Possivelmente teremos um teto orçamentário para as folhas salariais, mas com uma multa que permita um time ultrapassá-la. Por exemplo: se o teto é de US$ 50 milhões (e fala-se em US$ 30 milhões como teto) e um time tem uma folha de US$ 60 milhões, ele paga uma multa proporcional ao valor que está ultrapassando o teto, isto é, US$ 10 milhões. Em princípio essa multa será de 100%, o que quer dizer que o time pagaria ainda mais US$ 10 milhões para a liga como multa.

Mas é apenas uma aposta. O cenário de meio de ano, ainda que vários desfilem certezas disso e daquilo, é uma incógnita sombria.

Marcelo Constantino espera que esta seja a única vez que tenha de escrever sobre o imbróglio entre NHL e NHLPA; a Internet está recheada deste assunto não muito atraente para o torcedor. Um agradecimento especial aos leitores que acompanharam este especial.
 
  O FUTURO EM SUAS MÃOS A temporada de 2004-2005 está nas mãos de Gary Bettman (foto), Comissário da NHL, e Bob Goodenow, Diretor-Executivo da NHLPA (Arquivo The Slot BR)
   
 
  ADEUS, MILHÕES Jaromir Jagr diz que vai jogar na liga russa caso haja locaute. Certamente irá receber bem menos que os US$ 11 milhões que os Capitals lhe pagam hoje. Aliás, em qualquer outro lugar, em qualquer outro time, Jagr irá receber bem menos do que isso (Kenneth Lambert/AP - 17/07/2001)

 

CONCENTRAÇÃO
Sem desmerecer os três títulos do New Jersey Devils, Detroit Red Wings e Colorado Avalanche dominam o cenário o cenário da NHL há anos.

Numa das maiores movimentações já vistas no dia limite de trocas, em 1999 o Detroit Red Wings realmente puxou o gatilho, quando trouxe de uma só vez Chris Chelios, Ulf Samuelsson, Wendell Clark e Bill Ranford. Todos na liga diziam que os Wings haviam comprado o título. Foram eliminados pelos Avs na segunda-fase.

Para esta temporada o Colorado Avalanche trouxe a valorizada dupla Teemu Selanne e Paul Kariya por preços bem abaixo do mercado. Eles juntam-se a estrelas de primeira grandeza, como Peter Forsberg, Joe Sakic e Rob Blake e ainda os ótimos Mark Hejduk e Adam Foote.

Os Wings não ficaram atrás e contrataram o defensor Derian Hatcher e o ex-aposentado goleiro Dominik Hasek. Atualmente pagam salários pesados a dois goleiros de ponta e gastam com ambos mais da metade do que o Atlanta Thrashers gasta com sua folha inteira.  

 

LIVRE MERCADO? PARA OS OUTROS!
A NHLPA argumenta que não aceita teto salarial e que acredita no livre mercado como melhor regulador de salários. Parece até discurso de FMI. A NHL responde dizendo que o livre mercado não funciona para os esportes. Livre mercado é historicamente algo bom de se recomendar. Aos outros, claro.

Quem poderia imaginar o capital (no caso, a NHL) dizendo, dentro dos EUA, que o liberalismo não funciona?

 

NHL x OUTRAS GRANDES LIGAS NO EUA
Segundo a NHL, os times gastam em média 76% de suas receitas com salários. Bem mais que na NFL (64%), MLB (63%) e NBA (58%).

Cada time na NHL ganha menos de US$ 6 milhões por ano da TV, enquanto na NFL cada time leva US$ 77 milhões (isso mesmo, você leu corretamente).

 

LEIA MAIS SOBRE O ESPECIAL
"A NHL EM CRISE"
Parte 1: O que há com a NHL?
Parte 2: Novas regras para atrair público
Parte 3: Os abutres venceram

 

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Página publicada em 14 de janeiro de 2004.