Por
Eduardo Costa
Bem, o título desse texto não é dos mais originais. De cada dez matérias
já publicadas sobre o "Milagre no gelo", nove tem esse título. Mas por
ser tão fiel ao ocorrido merece mais uma vez ser usado.
Poucos, incluindo os americanos, acreditavam que os Estados Unidos conseguiriam
vencer a União Soviética e conquistar a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos
de 1980. Três dias antes do torneio olímpico começar, as duas seleções
se encontraram para uma partida amistosa no Madison Square Garden e
os soviéticos derrotaram os americanos por 11-3.
Os EUA eram treinados pelo lendário Herb Brooks, que morreu no último
mês de agosto em um acidente automobilístico. Meio que brincando, ele
tinha a receita de como não passar vergonha frente aos russos: "Os russos
são incríveis. Mas eu conheço um jeito em que podemos ter mais sucesso
contra eles. Bem, eu acho que se nós não aparecermos para jogar contra
eles perderemos por apenas 1-0 (algo como o WO nas regras da federação
internacional de hóquei). Isso poderia ser a menor vitória deles. Daqui
a um tempo leríamos nos livros de história que perdemos por apenas 1-0
e vão pensar que éramos realmente bons."
E mais, poucos meses antes, nem mesmo um grupo de jogadores treinados
por ninguém menos que Scotty Bowman e que tinha em sua escalação gênios
como Denis Potvin, Guy Lafleur, Larry Robinson e Mike Bossy foram páreos
para os russos. Então seriam desconhecidos colegiais como Billy Baker,
Ken Morrow, Steve Christoff e Jim Craig bons o bastante para derrubar
o exército vermelho? Uma equipe com média de idade em torno de vinte
anos vencer os, na época, campeões mundiais e olímpicos?
Os EUA atuaram em casa em Lake Placid, Nova York, e Brooks comentou
que se contentaria com um bronze. Começaram a campanha empatando com
a Suécia com um gol no último minuto. Após isso, conseguiram quatro
vitórias consecutivas até as semifinais. Esperando por eles estavam
os soviéticos.
Ambas as equipes já haviam disputado uma final olímpica, vinte anos
antes. Na oportunidade a competição também fora realizada em território
norte-americano e vencida, também surpreendentemente pelos donos da
casa. Mas daquele ano até 1980 os russos avançaram muito, o que não
acontecera com os rivais. Além disso, no campo político a guerra fria
ditava a relação entre as duas superpotências. O boicote americano aos
Jogos Olímpicos em Moscou no mesmo ano, devido à invasão soviética ao
Afeganistão, mostrava isso claramente. A guerra fria fez com que muitos
americanos prestassem atenção especial na partida.
Porém, antes do jogo Brooks buscou inspirar seus atletas, não com coisas
tipo capitalismo contra socialismo, e sim lembrando que aquela era uma
oportunidade esportiva única e não deveria ser desperdiçada: "Vocês
nasceram para serem jogadores de hóquei. Vocês deveriam realmente estar
aqui. Este é o momento de vocês".
Dois membros do que viria a ser a famosa linha KLM já faziam parte do
selecionado soviético: Vladimir Krutov e Sergei Makarov. O primeiro
inaugurou o placar redirecionando um chute do defensor Aleksei Kasatonov.
Cinco minutos depois, Buzz Schneider, o mais velho do time com 25 anos,
empatou. Makarov novamente colocou os russos na frente. Quando parecia
que terminaria assim o período, Mark Johnson empatou aos 19:59. O mítico
Vladislav Tretiak foi substituído pelo treinador -- e ditador nas horas
vagas -- Viktor Tikhonov após a jogada. O reserva Vladimir Myshkin jogou
os 40 minutos restantes.
O segundo período mostrou a superioridade soviética com 12-2 em chutes
a gol. Alesandr Maltsev marcou o gol que fez com que sua equipe levasse
a vantagem de um gol para o terceiro período. Com mais atitude, os donos
da casa empataram aos 8:39 com o segundo gol de Mark Johnson na partida.
Com dez minutos por jogar, um jovem de origem italiana, considerado
por diversos olheiros como sendo muito lento e muito frágil para atuar
em suas ligas, marcou o gol que assombrou o mundo do hóquei. Mike Eruzione
marcou o quarto gol dos EUA, o da virada, o da vitória. Tornando o dia
22 de fevereiro de 1980 o maior da história do hóquei ianque. O goleiro
Jim Craig parou 36 dos 39 chutes dos soviéticos e foi, junto a Eruzione,
responsável direto pelo milagre, já que seus compatriotas deram apenas
16 chutes ao gol dos soviéticos.
Viktor Tikhonov, além de ter retirado Tretiak ainda no período inicial,
não retirou o goleiro Myshkin no final da partida para tentar um empate
no desespero. Muitos brincam dizendo que, como raramente a União Soviética
chegava nos minutos finais da partida perdendo, o russo não saberia
como fazer tal coisa. Ficou no ar também a impressão que os soviéticos
subestimaram os norte-americanos e, ao goleá-los impiedosamente pouco
antes da competição, parecia que de forma alguma perderiam para os rivais.
Nos derrotados a sensação da perda não sumiu com o tempo. Mesmo com
quatro medalhas de ouro olímpicas, dez campeonatos do mundo conquistados,
uma Copa do Canadá e sendo o primeiro jogador europeu a ser introduzido
no Salão da Fama do hóquei, Vladislav Tretiak ainda não consegue esquecer
o dia em que ele e seus companheiros foram vítimas da maior zebra da
história do hóquei.
Embora o ex-goleiro ainda ache, 23 anos depois, que seu time era muito
superior aos americanos, ele dá muito crédito aos adversários: "Foi
a primeira equipe norte-americana que eu joguei contra que realmente
jogava como uma equipe e não com suas individualidades".
Tanto é verdade que daquela equipe apenas dois atletas tiveram real
destaque na NHL: Neal Broten e Ken Morrow. Esse último venceu três Copas
Stanley com o New York Islanders e Broten venceu uma com o New Jersey
Devils. Um dos grandes heróis da conquista, Eruzione pendurou os patins
logo após a partida, na tenra idade de 25 anos. E alguns dos jovens
atletas daquela seleção nem chegaram a atuar em uma liga profissional.
Champanhes foram mandados para o vestiário após a histórica vitória.
Mas nenhum jogador tocou nelas. O ouro não estava garantido para os
americanos. Dois dias após os jovens entrariam no gelo novamente. Dessa
vez contra os também fortes finlandeses.
Novamente, Brooks trabalhou o emocional de seus atletas antes da partida,
com seu particular jogo de palavras: "Basicamente, ele entrou no vestiário
e nos falou após o jogo contra os soviéticos que se nós perdêssemos
para a Finlândia, levaríamos isto para nossa sepultura", disse o goleiro
reserva Steve Janaszak. Os EUA venceram por 4-2.
A responsabilidade pareceu pesar no início. Os EUA começaram o terceiro
período perdendo para a Finlândia por 2-1. Porém, vinte minutos de hóquei
e três gols depois, os americanos faziam uma avalanche humana no gelo.
Mais alguns minutos e ouviam orgulhosos o hino de seu país e as medalhas
de ouro estavam nos peitos não dos quase imbatíveis soviéticos, ou dos
tradicionais canadenses, ou dos talentosos suecos, ou dos experimentados
finlandeses ou dos sempre fortes tchecos. E sim de um bando de desconhecidos
do hóquei colegial americano. Após aquele momento uma coisa passou a
ser certa: pelo menos no hóquei, milagres existem.
Estados Unidos
James Craig, Kenneth Morrow, Michael Ramsey, William Baker, John O Callahan,
Bob Suter, David Sirlk, Neal Broten, Mark Johnson, Steven Christoff,
Mark Wells, Mark Pavelich, Eric Strobel, Michael Eruzione, David Christian,
Robert McClanahan, William Buzz Schneider, Philip Verchota e John Harrington.
União Soviética
Vladimir Myshkin, Vladislav Tretiak, Vyacheslav Fetisov, Vasily Pervukhin,
Valery Vasilyev, Aleksei Kasatonov, Sergei Starikov, Zinetula Bilyaletdinov,
Vladimir Krutov, Aleksandr, Maltsev, Yuri Lebedev, Boris Mikhailov,
Vladimir Petrov, Valery Kharlamov, Helmuts Balderis, Viktor Zlukov,
Aleksandr Golikov, Sergei Makarov, Vladimir Golikov e Aleksandr Skvortsov.
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Eduardo Costa é colunista da The Slot
BR . |
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COMEMORAÇÃO
Após o milagre da vitória sobre a URSS (CNNSI - 22/02/80) |
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OURO DO PÓDIO Tendo
passado pelos soviéticos, o ouro veio depois da vitória
sobre os finlandeses na final (CNNSI - 1980) |
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