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6 de dezembro de 2002
54 anos resumidos em uma única temporada

Por Fabiano Pereira

Uma das frases mais célebres do hóquei no gelo foi vista em meio à torcida. Apesar do tôm comico, porém trágico, acabou marcando a história do New York Rangers. A frase era "Now I can die in peace". Ou, em português, "Agora posso morrer em paz". Imaginem a cena: a torcida gritando freneticamente e um cara levanta uma placa dessas. O que estava acontecendo para que isso ocorresse?

Antes de responder isso, vamos voltar alguns anos no tempo, para 1993. O Montreal Canadiens acabara de derrotar o Los Angeles Kings nas finais da Stanley Cup, com uma atuação perfeita do goleiro Patrick Roy, que acabou lhe valendo o Troféu Conn Smythe de melhor jogador do time nos playoffs. Pelos Kings, Wayne Gretzky, Luc Robitaille, Tomas Sandstrom, Jarri Kurri, Rob Blake. Já por Les Habitants, jogadores de bom nível, como Kirk Muller, Brian Bellows, Vincent Damphousse, Matthieu Schneider, Eric Desjardins, além da super-estrela Patrick Roy. Mas não é destes playoffs que vamos conversar.

Ao final da temporada de 1992-93, uma equipe da Divisão do Atlântico acabava de ficar na última colocação, apesar de todos os prognósticos. Era o New York Rangers, que não vencia a Stanley Cup desde 1940. Mesmo tendo contratado jogadores como Mark Messier, Jeff Beukeboom, Esa Tikkanen e Adam Graves, e contando com John Vanbiesbrouck, Brian Leetch e Mike Richter, ainda assim o time ficou em último.

O gerente geral da equipe, Neil Smith, sabia que seu trabalho estava correndo perigo. Contratou então o enérgico, porém eficiente Mike Keenan para técnico da equipe e trouxe jogadores como Steve Larmer, do Chicago Blackhawks, para ajudar na reviravolta. E a equipe acabou explodindo durante a temporada, consolidando sua liderança a cada rodada. A defesa firmava-se como uma das melhores, e o ataque ficava no mesmo nível. Jogadores como Sergei Zubov despontavam, e Adam Graves era o ala de força de que tanto os Rangers precisavam. Liderados por Messier e Leetch, a equipe dava a impressão de que iria se classificar facilmente.

Foi o que aconteceu. Mas, antes, o técnico Mike Keenan percebeu que precisava de mais veteranos na equipe. De jogadores para brigar nas bordas, disputar discos em frente ao gol. E vieram, dos Blackhawks, Stephane Matteau e Brian Noonan. Craig MacTavish, o homem que jogava sem capacete, veio dos Oilers. E, para tentar reviver uma das melhores linhas dos Oilers, veio Glenn Anderson, dos Maple Leafs, para se unir a Graves e Messier. Estava preparada a equipe para a pós-temporada. Estaria realmente preparada?

Terminada a temporada, os Rangers conquistaram o Troféu dos Presidentes, com a melhor campanha de toda a liga. Terminaram também com a melhor equipe de vantagem númerica e a terceira melhor de desvantagem. Sergei Zubov terminou líder de pontos da equipe, com 89. Adam Graves bateu o recorde de gols da equipe em uma temporada, com 52. O time parecia imbatível, mas enfrentaria o maior rival logo na primeira rodada: o New York Islanders, liderado (?) por Pierre Turgeon.

Antes dos jogos, a equipe blueshirt era esta:
Adam Graves - Mark Messier - Glenn Anderson
Esa Tikkanen - Alexei Kovalev - Donald Larmer
Stephane Matteau - Sergei Nemchinov - Brian Noonan
Greg Gilbert - Craig MacTavish - Joey Kocur

Brian Leetch - Jeff Beukeboom
Kevin Lowe - Sergei Zubov
Jay Wells - Alexander Karpovtsev

Mike Richter
Glenn Healy

Além deles, Doug Lidster, Eddie Olczyk, Nyck Kypreos, Mike Hartman e Mike Hudson completavam o elenco.

Parecia um bom time na teoria e na prática.

Quartas-de-final de conferência: (1) New York Rangers x New York Islanders (8)
Primeiro jogo e a ansiedade no rosto de cada jogador blueshirt. Mas, empurrados pela barulhenta e fanática torcida em Manhattan, o primeiro jogo foi dos mais fáceis, com retumbantes 6-0, com equilíbrio de todo o ataque: seis jogadores diferentes marcaram gols. Richter, que virou titular graças à escolha no recrutamento de expansão, quando da entrada de Florida Panthers e Mighty Ducks of Anahiem na liga, conseguiu seu primeiro shutout.

Parecia que iria ser fácil. E, no dia seguinte, com uma atuação inspirada de Richter e do ataque de Manhattan, outros 6-0. Onde estariam os Islanders na série?

Três dias depois, numa quinta-feira, os Rangers "viajariam" até Uniondale para sua primeira partida fora. Venceriam? Richter repetiria sua performance?

Neste jogo, a torcida dos Islanders inventou o grito de guerra de todas as torcidas adversárias."1940!", gritavam os rivais, tentando fazer com que os jogadores dos Rangers sentissem toda a responsabilidade de 54 anos sem um título. Após este jogo, o capitão Messier declarou que não tinha sentido toda essa lembrança em relação a 1940, pois não havia sido eles que ficaram tanto tempo sem ganhar, mas entendia o que a torcida sentia.

E quem sentiu realmente algo foram os Isles, que perderam o terceiro jogo por 5-1. Em noite inspirada de Graves, com dois gols, parecia que uma varrida se anunciava.

Novamente, os gritos de "1940!" permeavam o Nassau Memorial Coliseum, ainda mais com os Islanders saindo na frente, com gols de Steve Thomas e Patrick Plante. Mas o capitão Messier não queria ter que voltar a Manhattan para vencer e marcou dois gols nesta partida, que terminou 5-2.

A varrida dava um aviso a toda a liga: os Rangers estavam vindo para valer naqueles playoffs. Richter conseguira dois shutouts e levou apenas três gols em quatro jogos. Messier tinha quatro gols, e 11 jogadores diferentes haviam feito da vida dos Islanders um inferno.

Segunda Rodada: (1) New York Rangers x Washington Capitals (7)
Os Rangers enfrentariam agora os surpreendentes Capitals, que tinham acabado de derrotar os favoritos Penguins de Mario Lemieux, Jaromir Jagr, Ron Francis, Kevin Stevens e cia.

Esta série foi diferente da outra. Finalmente, algum time conseguia marcar mais que dois gols em Mike Richter, e justo no primeiro jogo. Entretanto, não foi suficiente, com o resultado final de 6-3, com destaque para Brian Noonan, que marcou dois gols.

A liderança na série parecia continuar a ser estabelecida, com um 5-2 no segundo jogo no Madison Square Garden. Os Rangers confirmavam seu favoritismo em seus domínios, mesmo que alguns ainda olhassem com desconfiança, ainda mais que Richter tinha levado cinco gols em dois jogos.

Para calar os críticos, ele foi perfeito no terceiro jogo, em Landover, e conseguiu seu terceiro shutout nos playoffs. Os Rangers venceram por 3-0, e Leetch e Messier destacavam-se cada vez mais.

Invictos havia sete jogos, parecia que nada iria parar os Rangers, até que os Capitals, no quarto jogo em sua arena, conseguiram uma vitória por 4-2, com Todd Krygier marcando seus dois primeiros gols nos playoffs.

Poderiam os Rangers suportar o baque de uma derrota? Sim, eles puderam e fecharam a série em Nova York, com uma apertada vitória por 4-3, com boa atuação de Adam Graves, que marcou dois gols na partida, totalizando sete em nos playoffs.

Os Rangers encaminhavam-se às finais de conferência descansados, contra um New Jersey que havia sofrido para passar pelos Sabres de Dominik Hasek, Pat LaFontaine e Alexander Mogilny, por 4-3, e pelos Bruins, de Ray Bourque e Adam Oates, por 4-2. Mas surgia nestes playoffs o esquema de jogo que prevalece até hoje: o "trap", ou a armadilha. Jogar contra os Devils era um pesadelo para o adversário, que dificilmente ganhava por muitos gols, além de pouco conseguir jogar. E desta maneira eles chegaram...

Finais de Conferência: (1) New York Rangers x New Jersey Devils (3)
E chegaram com toda a força, segurando o ataque nova-iorquino. Os Rangers venciam a partida por 3-2, quando a peste Claude Lemieux, futuro homem-tartagura, empatou a partida, levando-a à prorrogação. E, na segunda prorrogação, com um gol de Stephane Richer, os Devils venceram a primeira partida, em Nova York. Primeira derrota em frente a sua torcida. Os céticos diziam: "É sempre assim; chegamos longe para perder". Resultado final, 4-3, e a dúvida no ar.

Porém, no segundo jogo, os Rangers queriam mostrar toda a força que os levou até lá: retumbantes 4-0, com direito a shutout de Richter. Renasceriam os blueshirts?

Bem, no terceiro jogo, os Devils, que seguiram ao longo dos playoffs na base da prorrogação, levaram uma dose do próprio remédio. Perderam o terceiro jogo em East Rutherford, com um gol na segunda prorrogação de Stephane Matteau, um dos queridos de Mike Keenan. 2-1 na série e a sensação de que finalmente a Stanley Cup viria para Nova York, mas, desta vez, para Manhattan.

Só que os Devils não queriam saber disso e venceram o quarto jogo, em seus domínios, por 3-1, com uma partida espetacular do calouro Martin Brodeur. A série parecia se encaminhar para o maior dos equilíbrios, e isso ficou comprovado no jogo seguinte.

Os Devils venceram por 4-1, após abrir uma larga vantagem, com Tikkanen descontando para os Rangers. Perdendo a série por 3-2, a torcida e, principalmente os céticos, abaixavam a cabeça e lamentavam. Melhor campanha para quê?

Antes do sexto jogo, o capitão dos Rangers, Mark Messier fez uma declaração que, no mínimo, parecia prepotente. Perguntado se os Rangers iriam falhar em ser campeões da liga, ele simplesmente respondeu: "We'll win" ("Nós vamos ganhar").

Será? Com os Devils abrindo vantagem, com gols de Scott Niedermayer e Lemieux, parecia difícil. Alexei Kovalev diminuiu a vantagem, com assistência de Messier, e foi aí que o capitão começou a mostrar que sua palavra era lei. Além de marcar o gol de empate, marcou o da virada. Desesperados, os Devils tiraram o goleiro Martin Brodeur, que conta que, quando se sentou no banco e viu Messier com o controle do disco, chutando em direção ao gol aberto, apenas pensou: "meu Deus, ele conseguiu". É, Brodeur, promessa é dívida. E, com isso, Messier adquiria o tão conhecido apelido de "O Messias".

Mas o capitão não seria o único herói da série. Jogo 7 em Nova York, empatado em 1-1. Segunda prorrogação (deja vu?), e o "especialista" Stephanne Matteau enterrava de vez os Devils. Rangers nas finais da Stanley Cup.

O adversário seria o Vancouver Canucks, liderado pelo Foguete Russo Pavel Bure e pelo goleiro Kirk MacLean. A equipe canadense ficou em sétimo lugar na colocação geral, uma vitória apenas acima dos 50% de aproveitamento. Mas bateram fortes times em seu caminho. Primeiro, o Calgary Flames, por 4-3, passando então facilmente pelo Dallas Stars por 4-1. E, na final de conferência, derrotou de maneira mais supreendente ainda a forte equipe do Toronto Maple Leafs, liderada por Doug Gilmour. As finais prometiam muito...

Finais da Stanley Cup: New York Rangers x Vancouver Canucks
Primeiro jogo em Nova York, e os Canucks surpreendiam a estupefata torcida nova-iorquina com um gol de Greg Adams na prorrogação, selando o placar final em 3-2. Kirk MacLean foi impressionate, com 52 defesas. Falou-se muito que, se os Canucks fossem campeões, Pavel Bure deveria receber o prêmio de melhor jogador dos playoffs, mas era MacLean que brilhava, sem alardes.

O medo de ficar sem o título seria rapidamente dissipado, com três vitórias convincentes consecutivas. O segundo jogo, 3-1, com atuação destacada de Richter. Indo para Vancouver, os Rangers dominaram a série com imponentes 5-1, com Leetch mostrando ser um dos mais importantes jogadores de todo o elenco na corrida ao título, marcando dois gols. Jogo 4, os Canucks abrem uma vantagem de dois gols e um pênalti é marcado. Pavel Bure desliza pelo gelo e chuta. Richter defende, mudando todo o panorama do jogo. Os Rangers virariam a partida, vencendo por 4-2.

Enfrentando a possibilidade de ver os Rangers campeões no jogo 5, os Canucks jogaram com intensidade e sapecaram uma goleada de 6-3, com Bure e Geoff Courtnall anotando dois gols cada.

O medo voltava a Nova York, aumentado ainda mais com a vitória dos Canucks no sexto jogo, por 4-1, com Courtnall e Jeff Brown marcando dois gols. Vale lembrar que, na primeira série dos Canucks, eles viraram depois de estar perdendo por 3-1 para os Flames. Três vitórias consecutivas, e era isso que parecia que estava acontecendo novamente.

Mas o capitão não deixou. Com o jogo em 2-1 para os Rangers, ele marcou aquele que seria o gol da vitória nova-iorquina, mesmo que Trevor Linden ainda tentasse evitar a derrota de seu time.

Ao final do jogo, com a explosão do Madison Square Garden e o fim de um tabu de 54 anos, um torcedor levantou a célebre plaquinha: "Now I can die in peace". O capitão Mark Messier levantou a Stanley Cup, e Leetch recebeu o Conn Smythe, de melhor jogador dos playoffs, um dos poucos defensores a receber este prêmio.

Faz oito anos. Isso coincide exatamente com o tempo que torço para o New York Rangers. Graças a eles, hoje escrevo nesta revista. Não fosse a paixão que adquiri, dificilmente interessar-me-ia por hóquei como me interesso hoje. Bem, só espero que não precise escrever uma plaquinha como aquela, do jeito que as coisas andam...

Fabiano Pereira, em momento saudosista, relembra a cara de Brodeur ao ver o disco entrando no gol aberto... Richter defendendo o penalty shot de Bure... Mas, principalmente, o narrador gritando que a espera de 54 anos havia acabado...
ELE CONSEGUIU Martin Brodeur observa, do banco, Mark Messier cumprir sua promessa de vitória no jogo 6 das finais de conferência (Reprodução)
 
AOS CRÍTICOS, COM CARINHO Mike Richter muda totalmente o ânimo de seu time ao defender um pênalti de Bure no jogo 4 das finais (Reprodução)
 
54 ANOS EM UMA NOITE O capitão Mark Messier levanta a Stanley Cup, ensandecendo a torcida (Reprodução)
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Página publicada em 4 de dezembro de 2002.