Por
Marcelo Constantino
Nessas finais de Copa Stanley de 2004, uma previsível imprevisibilidade,
o azarão chegou a ser apontado como favorito por uma razoável parte
da imprensa especializada. De certa forma, havia um equilíbrio entre
os finalistas. Durante a série, os times foram trocando de papéis quase
que simetricamente. Calgary ganhou o jogo 1 por 4-1? Tampa Bay deu o
troco da mesma forma no jogo 2. Calgary ganhou o jogo 3 por shutout?
Tampa Bay ganhou por shutout também o jogo 4. Calgary venceu o jogo
5 por 3-2 na prorrogação? Exatamente assim fez o Tampa Bay no jogo 6.
Veio então o jogo 7. Pela lógica, era a vez do Calgary vencer. Não apenas
os times alternavam vitórias na série, o Lightning alternava vitória
com derrota desde o jogo 1 da série contra os Flyers. Eram nada menos
que 13 jogos sem conseguir vencer (nem perder) duas vezes seguidas.
Quem marcava primeiro vencia a partida. Até então nenhum time havia
virado um jogo nessas finais, mesmo que momentaneamente. Quando Brad
Richards marca um gol, o Tampa Bay não perde o jogo, e isso vinha desde
a temporada. Tabus, tabus e mais tabus. Era hora do jogo 7. Os tabus
seriam quebrados? Se sim, quais?
Aos Flames interessava a manutenção dos tabus (exceto, claro, que Richards
viesse a marcar um gol). Era a vez deles vencerem na série, era um jogo
fora de casa (onde eles jogavam bem melhor). Ao Lightning é que era
essencial quebrar o tabu da alternância e não mais reagir ao Calgary:
não havia mais tempo. Era o jogo 7.
A vitória do Calgary seria demonstração clara de que não basta ter talento
para vencer. Justo no ano em que o filme "Miracle" é lançado (e onde
esta sentença é verbalizada pelo técnico Herb Brooks num determinado
momento), eis mais um exemplo de como a raça e a disposição (e sorte,
por que não?) podem superar o puro talento. Mais, a vitória dos Flames
viria com cheiro de hóquei à moda antiga, em que o jogo bruto tem peso
crucial nas decisões.
A vitória do Lightning seria a vitória do talento. E assim foi, o talento
venceu.
Mas venceu somente depois da equipe do Tampa Bay assimilar, ainda no
jogo 5 da série, que era imprescindível equilibrar as forças com os
Flames em termos de raça. Não poderiam mais perder tantas batalhas pelo
disco nas bordas, não poderiam mais levar tantos trancos sem resposta
e sobretudo não poderiam mais relaxar, em momento algum da partida.
Porque os Flames eram incansáveis.
Mas não é que os incansáveis Flames pareciam cansados no jogo 7? Justo
no derradeiro jogo de uma final de Copa Stanley. O próprio técnico da
equipe admitiu que toda aquela impressionante energia que o time demonstrava
em qualquer jogo, a qualquer momento, durante todos os playoffs, havia
acabado no jogo 7.
Pudera, o time dos Flames é o que mais disputou partidas numa única
temporada de playoffs na história da NHL! Foram nada menos que 26 jogos,
de 28 possíveis, com 7 prorrogações no caminho. Pela frente sempre havia
algum grande obstáculo. Três campeões de divisão e um campeão de conferência
e detentor do Troféu dos Presidentes, todos com mais de 100 pontos na
temporada. Duas séries pesadíssimas: a inicial, com duas épicas e inesquecíveis
prorrogações contra o Vancouver Canucks, e a final, contra o Lightning.
O goleiro Miika Kiprusoff jogou por 1655 minutos, também recorde na
história da NHL, o que daria um total de quase 28 jogos de 60 minutos.
Guerreiros, esses Flames. Reconhecidamente batalhadores, tanto que todo
o Canadá os apoiou, inclusive times rivais históricos, como o Edmonton.
Tanto que foram recebidos de volta em Calgary como ídolos são, não como
derrotados. Tanto que, após a derrota no jogo 7, a capa do jornal Calgary
Herald estampava: "Estamos orgulhosos de vocês". Como não ficar?
Derretendo o gelo -- O talentoso time do Tampa Bay Lightning mereceu,
é claro. A Copa Stanley na Florida pode trazer mais torcedores para
a NHL nesta região realmente estranha ao hóquei no gelo. Ainda mais
que provavelmente o Tampa irá firmar-se entre as forças da Conferência
Leste, diante dos jovens talentos que possui. E pensar que na série
contra os Habs, em plenas semifinais de conferência, havia assentos
vazios em Tampa.
Vincent Lecavalier mostrou que deverá ser o próximo capitão da equipe,
com a esperada aposentadoria de Dave Andreychuk. Richards mostrou que
é jogador que decide. Martin St. Louis já tem um troféu Art Ross em
casa e é favorito para levar também o Hart. E Ruslan Fedotenko? Trocado
por uma promessa de primeira rodada dois anos atrás, tornou-se um daqueles
jogadores-chave do time campeão da Copa Stanley. Jogador versátil, que
joga em qualquer uma das asas, Fedotenko teve participação decisiva
não apenas no jogo 7, com dois gols, mas em todos os playoffs, com 12
gols no total.
Longa vida ao Tampa Bay Lightning.
O gol de Gelinas no jogo 6 -- Pela ESPN parecia claro que o disco
estava dentro. Mas, daquela posição da câmera, é bem possível que sejamos
levados a errar. Uma simulação por computador, apresentada durante o
jogo 7, mostrava isso, que não havia como ter certeza de que o disco
ultrapassara a linha do gol inteiramente. De qualquer forma, o mais
estranho para mim foi que, após o lance, o jogo não foi paralisado para
a revisão da jogada, como deveria ter sido.
E justo Martin Gelinas, o jogador que marcou o gol da classificação
do time em cada uma as séries anteriores, dois deles na prorrogação.
Aquele disco que não se sabe ao certo se entrou ou não seria o gol da
Copa Stanley. Agora são águas passadas.
Grande final -- Foi a primeira e única vez que um time canadense
chegou à final dentro do atual Acordo Coletivo de Trabalho (o CBA) e
foi a melhor final de Copa Stanley que a NHL já produziu desde 1994,
ainda que bem inferior àquela. Foi boa não por jogadas espetaculares,
mas pela batalha incessante, pelo jogo intenso e bruto (componente que
tanto faltava a uma final), pela disputa na maior parte das vezes equilibrada,
pela raça e pelos times não praticarem a armadilha da zona neutra.
O sonho de todo fã que não torcia especialmente para nenhum dos dois
times, uma prorrogação num jogo 7 de final de Copa Stanley, não se realizou.
Aliás, não se realiza há 50 anos! Na verdade, os 10 minutos finais da
partida valeram pelo jogo inteiro, muito mais que os 50 primeiros. Até
então os Flames eram um time bem diferente dos seis jogos anteriores,
mas acordaram depois do gol de Craig Conroy. A série parecia ter voltado
ao normal e o jogo incendiou. Os Flames pressionaram e os Bolts seguraram,
especialmente o goleiro Nikolai Khabibulin, que salvou tudo.
Houve um lance, AQUELE lance, do tipo que todos ficam lamentando depois
com um "se aquele disco tivesse entrado...". Esse lance foi o rebote
aproveitado por Jordan Leopold, no lado esquerdo do ataque, que Khabibulin
salvou de forma sensacional. Foi a defesa do jogo. Era o gol de empate,
que levaria o jogo para a prorrogação. Não foi.
Futuro -- O Tampa Bay tem um time jovem, ainda promissor (ainda
barato) e bem habilidoso. E está numa divisão que não promete muita
coisa para o futuro próximo, exceto, quem sabe, pelos Thrashers. Pode
tornar-se permanentemente uma das grandes forças da liga. Com tantas
jovens promessas despontando na equipe é certo que a franquia terá de
abrir a carteira para manter a estrutura vital do time. St. Louis, Lecavalier
e Richards ainda têm pelo menos uma década de hóquei de alto nível pela
frente.
O Calgary já é um caso diferente. Também é um time jovem, também promissor
(também barato), mas não é um time que esbanja categoria. Estava num
grande momento nesses playoffs, mas não há indícios fortes de que isso
se prolongue pela próxima temporada, com o time figurando entre os grandes
do Oeste, pelo contrário. Entretanto, o estilo aguerrido os diferencia
claramente de outros azarões que chegaram até a final e perderam nos
últimos anos, como Capitals, Hurricanes, Sabres e Mighty Ducks. Sabe-se
lá quando e como teremos uma nova temporada da NHL, mas é certo que
os Flames reúnem várias condições para, na próxima temporada, não serem
mais um adepto da síndrome do time-azarão-que-não-se-classifica-para-os-playoffs-depois-de-chegar-à-final-da-Copa-Stanley-e-perder.
Há pontos que requerem muita melhora na equipe, especialmente a aquisição
de pelo menos um defensor que atue (bem) no estilo quarterback.
Esses dois times mostraram sobretudo que o poder econômico não é tão
determinante na NHL. Parabéns a ambos pelo espetáculo da final.
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Marcelo
Constantino recomenda mais do que “Diários de
motocicleta” no cinemas, recomenda a leitura da biografia
de Che Guevara, por Jon Lee Anderson. Inesquecível. |
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DEPOIS DO DUELO Darryl Sydor
e Jarome Iginla duelaram durante toda a série, e o defensor
levou a melhor nas duas últimas partidas. Terminada a final,
os dois se cumprimentam cordialmente (Paul Chiasson/AP - 07/06/2004) |
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E VAI PARA A GALERA Dave Andreychuk
passa com a Copa Stanley pela torcida para chegar ao vestiário.
Era hora de comemoração (Gene J. Puskar/AP - 07/06/2004) |
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O MVP BEBE DA TAÇA Brad
Richards, MVP dos playoffs, bebe o champanhe da Copa Stanley (Gene
J. Puskar/AP - 07/06/2004) |
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DERROTADOS? Você acredita
que esta foto foi tirada às 4 da madrugada, registrando a
chegada de Mike Commodore a Calgary, no Aeroporto? Pois é,
assim que a torcida dos Flames saudou seus jogadores após
a derrota final (Colleen Kidd/Calgary Herald - 09/06/2004) |
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