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3 de janeiro de 2003
Não se importem com o livro de recordes

Por Humberto Fernandes

Eu sempre leio e ouço de fãs da NHL que Patrick Roy é o rei dos goleiros. Ledo engano. Somente dois tipos de pessoas ligadas ao jogo dizem isso: os que torcem pelo Avalanche e aqueles que não conhecem a história de Terry Sawchuk.

Abaixo, a história daquele que deixou uma marca indelével na NHL, infelizmente esquecida pela tendência do ser humano em sempre dar maior valor ao que é mais recente.

As cicatrizes em seu rosto dizem tudo. Não há necessidade de fazer alguma pergunta. Os cortes e arranhões contam a história de um homem que constantemente era assombrado por dores e angústias mentais.

Os livros de recordes mostram que Terry Sawchuk foi um dos maiores goleiros da NHL. Sua carreira teve 21 temporadas por cinco equipes diferentes. Ele conseguiu pelo menos um shutout em 20 dessas temporadas e só não conseguiu manter sua média de gols sofridos abaixo de 3.00 por duas vezes. Seus 103 shutouts na carreira mostram um recorde que nunca pôde ser quebrado. Sawchuk fez muito pelo jogo de hóquei, mas é uma vergonha ver o que o hóquei acabou fazendo com ele.

Sawchuk entrou na liga em 1951, como um promissor jovem com o Detroit Red Wings. As esperanças eram altas em Detroit; acreditavam que este garoto poderia ser uma estrela, e Sawchuk não fez nada para diminuir as expectativas. Atuou em todos os 70 jogos do Detroit naquela temporada, conseguindo 11 shutouts e uma média de 1,98 gol sofrido por partida. Recebeu o Troféu Calder e foi indicado novato do ano.

As coisas foram bem para Sawchuk nos quatro anos seguintes. Ganhou três vezes o Troféu Vezina e três Stanley Cups, incluindo o bicampeonato em 1954 e 1955. A confiança depositada nele esteve sempre alta. Entretanto, dificuldades começaram a aparecer para Sawchuk.

Após vencer a Stanley Cup em 1955, o gerente do Detroit, Jack Adams, chocou o time mandando Sawchuk para o Boston Bruins. Talvez Adams tenha pensado que o goleiro Glenn Hall, anteriormente em ligas inferiores, estivesse pronto para jogar na NHL, e que Sawchuk já estava desgastado. A troca deixou Sawchuk atordoado. Ele começou a ter dúvidas sobre suas habilidades. Sua mente refletia se Adams estava certo ou não em trocá-lo. Ele continuou pensando "talvez eu não seja tão bom".

Os jogos seguintes em Boston serviram para aumentar as dúvidas de Sawchuk, que perdia a concentração facilmente, tornando seu jogo ruim. Na metade de sua segunda temporada com os Bruins, Sawchuk desenvolveu um problema psicológico. Enquanto recuperava-se, era criticado pelos jornais de Boston por perder muitos jogos. Até mesmo seu treinador dizia que ele era um molenga. Sawchuk não estava mentalmente preparado para enfrentar isso. Ele rapidamente ameaçou processar quatro jornais de Boston por suas críticas, mas elas não cessaram. Finalmente, Sawchuk estourou. Ele abandonou os Bruins, declarando que estava entrando em "aposentadoria temporária provocada por tensão emocional".

Enquanto isso, em Detroit, as coisas não estavam muito fáceis para o substituto de Sawchuk, Glenn Hall. Aparentemente, Hall não estava preparado para a ação da NHL como Adams havia pensado, e assim ele trouxe Sawchuk novamente e o convenceu a voltar a seu local familiar entre as traves.

No gelo, tudo parecia ter voltado ao normal, mas havia coisas longe da normalidade na cabeça de Sawchuk. Ele logo se tornou uma pessoa apreensiva, insegura, nervosa e de difícil temperamento, ficando agitado facilmente. Seu estado mental era nitidamente percebido durante os jogos, em seu estilo e atitude de jogar. Ele disputou jogos completos com os nervos à flor da pele. Sua marca registrada "gorilla-like", que consistia em se abaixar com as pernas esticadas e deixar os tornozelos e a face apenas alguns centímetros acima do gelo, tornava fácil para ele ver as jogadas e defender chutes em que outros goleiros nem mesmo conseguiriam tocar no disco. Por estar constantemente se abaixando, balançando, mergulhando, mexendo e gritando com seus companheiros, poderia parecer que algo havia baixado em seu corpo. Já não era uma pessoa estável.

A troca para Boston não era a única razão para estes problemas de Sawchuk. Em primeiro lugar, ele não teve uma infância normal. Dois de seus irmãos morreram quando ele ainda era muito jovem. Então, com 14 anos, foi forçado a trabalhar instalando coberturas em gigantescos fornos de padarias para ajudar sua família. Isso provavelmente o levou a alguns dos problemas que teve quando adulto. Mas o mais brilhante dos problemas poderia ser atribuído ao jogo que ele tanto amou.

A tensão física que um goleiro encontrava no dia-a-dia era incrível. Parecia que Sawchuk havia enfrentado mais dores que qualquer outro goleiro na história do esporte. Ele sofreu com ossos quebrados, concussões, artrite, problemas nas costas e psicológicos. Levou mais de 400 pontos em seu rosto e cabeça, incluindo três no olho direito (ele não usou máscara até 1962).

Isso seria suficiente para muitas pessoas decidirem que já haviam tido o bastante, mas ainda havia mais. No começo de sua carreira, sofreu uma contusão no ombro que não o permitiu erguer a mão que segurava o taco acima da altura do tórax por toda sua vida. Além disso, desenvolveu um problema vertebral, lordose, causador de tanta dor que só o deixava dormir por duas horas seguidas a cada noite. Em 1966, o lado esquerdo de seu corpo ficou paralisado. Pensou que era resultado de uma pancada, mas depois descobriu que havia dois discos de hérnia em suas costas. Precisou ser operado para corrigir este problema que poderia ter encerrado sua carreira, mas, de alguma maneira, ele pôde jogar novamente.

Por causa destas contusões, como você pode imaginar, Sawchuk se tornou um homem muito infeliz. O agradável jovem da época em que entrou na liga havia se transformado em um homem amargo e dolorido em alguns poucos anos.

Apesar de seus companheiros de equipe conhecerem sua condição, pouco podiam fazer. "Ukey [Sawchuk] é um estranho pássaro: você pode brincar com ele um minuto no vestiário e, se o vir na rua depois, ele vai passar direto por você", disse um antigo companheiro de equipe certa vez.

Mas, de certo modo, o hóquei era seu descanso para todas as pressões que o amarguravam e se tornou uma constante até o fim de sua vida. Seus problemas mentais contínuos pioraram ainda mais quando sua esposa e filhos o abandonaram, fazendo com que Sawchuk se mudasse para a casa de um companheiro de equipe, Ron Stewart. Esta mudança mostrou-se ainda pior, porque em um dia do outono de 1970, eles começaram a discutir fora de casa. A discussão se transformou em uma briga, e, quando tudo estava dito e feito, Sawchuk se machucou e foi levado para o hospital. Complicações começaram enquanto estava lá e ele finalmente faleceu após sofrer uma cirurgia de emergência em maio de 1970.

Terry Sawchuk teve alguns números surpreendentes enquanto jogador da NHL, mas as dificuldades que enfrentou todos os dias para jogar dizem muito mais sobre ele que qualquer estatística encontrada em um livro de recordes.

Humberto Fernandes não se esquece daqueles 7-0 nas finais de conferência. Obrigado, Paaah trick Wah.
 
(Fotos: Arquivo The Slot BR)
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Página publicada em 1.º de janeiro de 2003.