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11 de junho de 2004
A vitória do talento, quebrando tabus

Por Marcelo Constantino

Nessas finais de Copa Stanley de 2004, uma previsível imprevisibilidade, o azarão chegou a ser apontado como favorito por uma razoável parte da imprensa especializada. De certa forma, havia um equilíbrio entre os finalistas. Durante a série, os times foram trocando de papéis quase que simetricamente. Calgary ganhou o jogo 1 por 4-1? Tampa Bay deu o troco da mesma forma no jogo 2. Calgary ganhou o jogo 3 por shutout? Tampa Bay ganhou por shutout também o jogo 4. Calgary venceu o jogo 5 por 3-2 na prorrogação? Exatamente assim fez o Tampa Bay no jogo 6.

Veio então o jogo 7. Pela lógica, era a vez do Calgary vencer. Não apenas os times alternavam vitórias na série, o Lightning alternava vitória com derrota desde o jogo 1 da série contra os Flyers. Eram nada menos que 13 jogos sem conseguir vencer (nem perder) duas vezes seguidas.

Quem marcava primeiro vencia a partida. Até então nenhum time havia virado um jogo nessas finais, mesmo que momentaneamente. Quando Brad Richards marca um gol, o Tampa Bay não perde o jogo, e isso vinha desde a temporada. Tabus, tabus e mais tabus. Era hora do jogo 7. Os tabus seriam quebrados? Se sim, quais?

Aos Flames interessava a manutenção dos tabus (exceto, claro, que Richards viesse a marcar um gol). Era a vez deles vencerem na série, era um jogo fora de casa (onde eles jogavam bem melhor). Ao Lightning é que era essencial quebrar o tabu da alternância e não mais reagir ao Calgary: não havia mais tempo. Era o jogo 7.

A vitória do Calgary seria demonstração clara de que não basta ter talento para vencer. Justo no ano em que o filme "Miracle" é lançado (e onde esta sentença é verbalizada pelo técnico Herb Brooks num determinado momento), eis mais um exemplo de como a raça e a disposição (e sorte, por que não?) podem superar o puro talento. Mais, a vitória dos Flames viria com cheiro de hóquei à moda antiga, em que o jogo bruto tem peso crucial nas decisões.

A vitória do Lightning seria a vitória do talento. E assim foi, o talento venceu.

Mas venceu somente depois da equipe do Tampa Bay assimilar, ainda no jogo 5 da série, que era imprescindível equilibrar as forças com os Flames em termos de raça. Não poderiam mais perder tantas batalhas pelo disco nas bordas, não poderiam mais levar tantos trancos sem resposta e sobretudo não poderiam mais relaxar, em momento algum da partida. Porque os Flames eram incansáveis.

Mas não é que os incansáveis Flames pareciam cansados no jogo 7? Justo no derradeiro jogo de uma final de Copa Stanley. O próprio técnico da equipe admitiu que toda aquela impressionante energia que o time demonstrava em qualquer jogo, a qualquer momento, durante todos os playoffs, havia acabado no jogo 7.

Pudera, o time dos Flames é o que mais disputou partidas numa única temporada de playoffs na história da NHL! Foram nada menos que 26 jogos, de 28 possíveis, com 7 prorrogações no caminho. Pela frente sempre havia algum grande obstáculo. Três campeões de divisão e um campeão de conferência e detentor do Troféu dos Presidentes, todos com mais de 100 pontos na temporada. Duas séries pesadíssimas: a inicial, com duas épicas e inesquecíveis prorrogações contra o Vancouver Canucks, e a final, contra o Lightning. O goleiro Miika Kiprusoff jogou por 1655 minutos, também recorde na história da NHL, o que daria um total de quase 28 jogos de 60 minutos.

Guerreiros, esses Flames. Reconhecidamente batalhadores, tanto que todo o Canadá os apoiou, inclusive times rivais históricos, como o Edmonton. Tanto que foram recebidos de volta em Calgary como ídolos são, não como derrotados. Tanto que, após a derrota no jogo 7, a capa do jornal Calgary Herald estampava: "Estamos orgulhosos de vocês". Como não ficar?

Derretendo o gelo --
O talentoso time do Tampa Bay Lightning mereceu, é claro. A Copa Stanley na Florida pode trazer mais torcedores para a NHL nesta região realmente estranha ao hóquei no gelo. Ainda mais que provavelmente o Tampa irá firmar-se entre as forças da Conferência Leste, diante dos jovens talentos que possui. E pensar que na série contra os Habs, em plenas semifinais de conferência, havia assentos vazios em Tampa.

Vincent Lecavalier mostrou que deverá ser o próximo capitão da equipe, com a esperada aposentadoria de Dave Andreychuk. Richards mostrou que é jogador que decide. Martin St. Louis já tem um troféu Art Ross em casa e é favorito para levar também o Hart. E Ruslan Fedotenko? Trocado por uma promessa de primeira rodada dois anos atrás, tornou-se um daqueles jogadores-chave do time campeão da Copa Stanley. Jogador versátil, que joga em qualquer uma das asas, Fedotenko teve participação decisiva não apenas no jogo 7, com dois gols, mas em todos os playoffs, com 12 gols no total.

Longa vida ao Tampa Bay Lightning.

O gol de Gelinas no jogo 6 --
Pela ESPN parecia claro que o disco estava dentro. Mas, daquela posição da câmera, é bem possível que sejamos levados a errar. Uma simulação por computador, apresentada durante o jogo 7, mostrava isso, que não havia como ter certeza de que o disco ultrapassara a linha do gol inteiramente. De qualquer forma, o mais estranho para mim foi que, após o lance, o jogo não foi paralisado para a revisão da jogada, como deveria ter sido.

E justo Martin Gelinas, o jogador que marcou o gol da classificação do time em cada uma as séries anteriores, dois deles na prorrogação. Aquele disco que não se sabe ao certo se entrou ou não seria o gol da Copa Stanley. Agora são águas passadas.

Grande final --
Foi a primeira e única vez que um time canadense chegou à final dentro do atual Acordo Coletivo de Trabalho (o CBA) e foi a melhor final de Copa Stanley que a NHL já produziu desde 1994, ainda que bem inferior àquela. Foi boa não por jogadas espetaculares, mas pela batalha incessante, pelo jogo intenso e bruto (componente que tanto faltava a uma final), pela disputa na maior parte das vezes equilibrada, pela raça e pelos times não praticarem a armadilha da zona neutra.

O sonho de todo fã que não torcia especialmente para nenhum dos dois times, uma prorrogação num jogo 7 de final de Copa Stanley, não se realizou. Aliás, não se realiza há 50 anos! Na verdade, os 10 minutos finais da partida valeram pelo jogo inteiro, muito mais que os 50 primeiros. Até então os Flames eram um time bem diferente dos seis jogos anteriores, mas acordaram depois do gol de Craig Conroy. A série parecia ter voltado ao normal e o jogo incendiou. Os Flames pressionaram e os Bolts seguraram, especialmente o goleiro Nikolai Khabibulin, que salvou tudo.

Houve um lance, AQUELE lance, do tipo que todos ficam lamentando depois com um "se aquele disco tivesse entrado...". Esse lance foi o rebote aproveitado por Jordan Leopold, no lado esquerdo do ataque, que Khabibulin salvou de forma sensacional. Foi a defesa do jogo. Era o gol de empate, que levaria o jogo para a prorrogação. Não foi.

Futuro --
O Tampa Bay tem um time jovem, ainda promissor (ainda barato) e bem habilidoso. E está numa divisão que não promete muita coisa para o futuro próximo, exceto, quem sabe, pelos Thrashers. Pode tornar-se permanentemente uma das grandes forças da liga. Com tantas jovens promessas despontando na equipe é certo que a franquia terá de abrir a carteira para manter a estrutura vital do time. St. Louis, Lecavalier e Richards ainda têm pelo menos uma década de hóquei de alto nível pela frente.

O Calgary já é um caso diferente. Também é um time jovem, também promissor (também barato), mas não é um time que esbanja categoria. Estava num grande momento nesses playoffs, mas não há indícios fortes de que isso se prolongue pela próxima temporada, com o time figurando entre os grandes do Oeste, pelo contrário. Entretanto, o estilo aguerrido os diferencia claramente de outros azarões que chegaram até a final e perderam nos últimos anos, como Capitals, Hurricanes, Sabres e Mighty Ducks. Sabe-se lá quando e como teremos uma nova temporada da NHL, mas é certo que os Flames reúnem várias condições para, na próxima temporada, não serem mais um adepto da síndrome do time-azarão-que-não-se-classifica-para-os-playoffs-depois-de-chegar-à-final-da-Copa-Stanley-e-perder. Há pontos que requerem muita melhora na equipe, especialmente a aquisição de pelo menos um defensor que atue (bem) no estilo quarterback.

Esses dois times mostraram sobretudo que o poder econômico não é tão determinante na NHL. Parabéns a ambos pelo espetáculo da final.

Marcelo Constantino recomenda mais do que “Diários de motocicleta” no cinemas, recomenda a leitura da biografia de Che Guevara, por Jon Lee Anderson. Inesquecível.
DEPOIS DO DUELO Darryl Sydor e Jarome Iginla duelaram durante toda a série, e o defensor levou a melhor nas duas últimas partidas. Terminada a final, os dois se cumprimentam cordialmente (Paul Chiasson/AP - 07/06/2004)
 
E VAI PARA A GALERA Dave Andreychuk passa com a Copa Stanley pela torcida para chegar ao vestiário. Era hora de comemoração (Gene J. Puskar/AP - 07/06/2004)
 
O MVP BEBE DA TAÇA Brad Richards, MVP dos playoffs, bebe o champanhe da Copa Stanley (Gene J. Puskar/AP - 07/06/2004)
 
DERROTADOS? Você acredita que esta foto foi tirada às 4 da madrugada, registrando a chegada de Mike Commodore a Calgary, no Aeroporto? Pois é, assim que a torcida dos Flames saudou seus jogadores após a derrota final (Colleen Kidd/Calgary Herald - 09/06/2004)

 

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Página publicada em 9 de junho de 2004.