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4 de junho de 2004
Summit Series

Por Shawn Zimmerman, especial para The Slot BR

Com o filme "Miracle" nos cinemas pelo mundo, todos falam sobre a conquista milagrosa dos Estados Unidos contra a União Soviética, nas Olimpíadas de 1980. Mas foi em 1972, oito anos antes do "milagre", que o hóquei mudou para sempre, com dois países entrando numa guerra no gelo para decidir quem era o melhor do mundo.

Foi no torneio que veio a se chamar Summit Series, com oito jogos entre o Canadá e a União Soviética, entre os dias 2 e 28 de setembro. Os quatro primeiros jogos seriam disputados no Canadá (em Montreal, Toronto, Winnipeg e Vancouver), e os últimos quatro, em Moscou. O torneio foi numa época em que os canadenses dominavam o hóquei no gelo. Tal qual hoje em dia, o hóquei era como uma religião para os canadenses, e ninguém no país pensava que uma outra seleção pudesse rivalizar com a deles. Todos então achavam que o torneio seria uma demonstração do talento canadense, só que foi o inverso. Ninguém esperava o imenso talento dos soviéticos, e, no primeiro jogo, em Montreal, o que deveria ter sido uma vitória fácil para o Canadá tornou-se uma derrota constrangedora por 7-3.

O Canadá inteiro ficou quase sem ar. Ninguém esperava esse resultado; todos previam oito vitórias canadenses consecutivas. Jornalistas justificaram a derrota dizendo que os jogadores do Canadá não levaram o jogo a sério e que não estavam em forma depois das férias de verão. Mas a razão verdadeira foi o fato de a URSS ter uma seleção muito mais forte do que se imaginava.

No segundo jogo, o Canadá venceu por 4-1, em Toronto. A seleção canadense jogou com muito mais emoção e determinação, batendo os soviéticos contra as bordas e dando um show no gelo para o público. A vida era bela novamente, o Canadá vencera e todos esperavam mais seis vitórias fáceis, mas isso não aconteceu. Dois dias depois, em Winnipeg, as duas seleções empataram em 4-4. O nível desse jogo aumentou bastante em comparação ao anterior, e ficou claro que a União Soviética não entrou no torneio para aprender, mas, sim, para ensinar aos canadenses que eles não eram a única nação de hóquei no mundo. Isso ficou até mais evidente quando os soviéticos venceram por 5-3 o último jogo no Canadá, disputado em Vancouver.

O Canadá ganhou apenas uma vez, empatou outra e perdeu duas vezes. Ninguém esperava esses resultados. O povo canadense não acreditava no que estava vendo. No último jogo, a própria torcida vaiou a seleção. Os jogadores ficaram sem palavras e muito frustrados com a reação da torcida. Até um dos capitães, Phil Esposito, disse em uma entrevista depois do jogo que a seleção não esperava esses resultados, mas, mesmo assim, não merecia ser tratada pelo publico daquela maneira.

A seleção da União Soviética, alegre e confiante, voltava para casa com cinco pontos nas mãos (duas vitórias, um empate e uma derrota). Enquanto isso, a seleção canadense seguia para uma terra desconhecida e hostil, procurando um jeito de vencer os talentosos soviéticos. Os jogadores do Canadá sentiram-se abandonados depois da reação da própria torcida, mas estavam enganados. Três mil canadenses viajaram para a Moscou, a fim de apoiar o time, e milhões de telegramas de apoio foram mandados para os jogadores. Durante o primeiro jogo em Moscou, a torcida canadense fazia tanto barulho que a torcida soviética, geralmente conservadora, tentou, sem sucesso, ser mais ruidosa. Infelizmente para a seleção canadense, a torcida não foi suficiente e o jogo terminou com mais uma derrota, desta vez por 5-4.

Mesmo assim, o Canadá jogou sua melhor partida do torneio. O ódio entre as duas seleções tinha aumentado. Agora a Guerra Fria significava muito mais. Houve muito mais violência durante os jogos do que fora do gelo, na política. Os jogadores se digladiaram, usando as mãos, o taco e até os patins. Mas agora o desafio para o Canadá parecia quase impossível: eram necessárias três vitórias consecutivas para ganhar o torneio. O desafio ficou mais difícil ainda quando os dois juízes da Alemanha tentaram entregar os jogos seguintes para os soviéticos. Eles marcaram penalidade após penalidade contra os canadenses, muitas vezes sem nenhuma explicação. Pareciam estar com um pé atrás contra o Canadá. Só que isso não desmoralizou o time, que venceu por 3-2. Nada estava determinado ainda.

A seleção canadense achou a confiança que havia perdido depois dos primeiros quatro jogos no Canadá. No sétimo jogo, a intensidade aumentou ainda mais, e os dois times, que haviam começado o torneio de uma maneira agradável e simpática, se preparavam para uma verdadeira guerra, o que resultou em várias contusões. Havia atletas com ossos quebrados, concussões cerebrais, mas nada podia fazer um deles perder qualquer desses jogos. A duas partidas do fim, as duas seleções entraram na melhor forma. Nada mais de desculpas; os dois times estavam prontos para disputar os jogos mais importantes de suas vidas.

E o jogo foi disputado como se fosse mesmo o último da vida deles. O placar ficou empatado em 3-3 até que Paul Henderson, a 2:08 do final da partida, marcou o gol da vitória, empatando a série. Foi o mesmo Henderson que havia marcado o gol da vitória canadense na partida anterior. Depois do jogo, ele disse em uma entrevista que foi o gol mais importante da vida dele e que então ele podia morrer feliz. Mas ainda faltava uma partida para determinar o vencedor.

Os dois países inteiros estavam prontos para ver esse jogo. No Canadá, todo o país parou, todo mundo estava em frente a uma televisão para ver o jogo. Eles sabiam que um empate não seria suficiente. Os soviéticos haviam marcado um gol a mais do que os canadenses, então a igualdade significaria a vitória da URSS na série.

A partida começou com muita emoção, mas os juízes novamente deram trabalho aos canadenses. Com apenas dois minutos de partida, o Canadá ficou com dois jogadores a menos, e os soviéticos abriram o placar. Os canadenses não desistiram, mas, depois de dois intervalos, os europeus venciam por 5-3. Mesmo assim, o Canadá estava confiante de que ainda podia vencer. Um gol de Phil Espósito, aos dois minutos do último período, facilitou.

O placar marcava 5-4 para a URSS e, dez minutos depois, o Canadá empatou. O juiz demorou para confirmar o gol, e já parecia que ele não iria dar o sinal. O presidente da seleção canadense, Alan Eagleson, que fazia parte da torcida, tentou avançar para cima do juiz para reclamar, mas, assim que chegou perto, os soldados soviéticos tentaram levá-lo para fora. Vendo isso, os jogadores canadenses foram ajudar Eagleson e usaram os tacos como arma contra as pistolas dos soldados. Em uma das situações mais estranhas na história do esporte, os jogadores conseguiram levar o presidente com eles. Finalmente, o gol do Canadá foi anunciado, e o placar ficou empatado em 5-5.

O coração de uma nação inteira estava correndo a mil quilômetros por minuto. O Canadá inteiro comemorou esse quinto gol, mas, com os minutos passando, o time precisava de mais um gol. Quando o último minuto do jogo chegou, a esperança quase desapareceu. Mas os jogadores continuaram a batalhar, e o Canadá teve mais uma chance quando Yvan Cornoyer interceptou o disco e deu um passe para Henderson, que não o dominou. Felizmente, Esposito estava atrás dele e teve a chance de chutar.

O goleiro fez a defesa, mas Henderson — o mesmo que marcara os dois gols da vitória nos jogos anteriores — pegou o disco e marcou, com apenas 34 segundos faltando para o fim do jogo. Aquele foi realmente o gol mais importante e famoso na vida dele. Com a vitória, o Canadá venceu por 6-5 e ganhou a série por 4-3-1. Milhões de canadenses saíram às ruas para comemorar a vitória. Parecia o fim da Segunda Guerra Mundial — e para os canadenses tinha quase o mesmo significado. As pessoas se abraçavam e se beijavam nas ruas. Foi um imenso espetáculo.

Mesmo com os canadenses vencendo a série, ficou claro que eles não seriam mais a única seleção dominante no hóquei. Todo mundo havia percebido que os europeus tinham alguns dos melhores jogadores do mundo. Mesmo assim, demoraria mais algum tempo para os jogadores da Europa chegarem na NHL. Mas a Summit Series mostrou para o mundo que os europeus podiam jogar no mesmo nível que os canadenses. Até hoje, a seleção canadense de hóquei é considerada a melhor do mundo, mas isso não quer dizer que ela sempre ganhe. Atualmente há muito mais competição, e as seleções de todos os países estão melhorando. Agora podemos lembrar dessa série histórica, que marcou um momento decisivo do hóquei moderno.

Shawn Zimmerman é leitor da The Slot BR e mora em Montreal, Canadá.

 

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Página publicada em 2 de junho de 2004.